sexta-feira, 31 de julho de 2020

O Fédon de Platão e o caminho das virtudes

O Fédon de Platão



Seleção de passagens sobre a jornada da alma e a senda da virtude:

"...os verdadeiros filósofos se acautelam contra os apetites do corpo, resistem-lhes e não se deixam dominar por eles; não têm medo da pobreza nem da ruína de sua própria casa, como a maioria dos homens, amigos das riquezas, nem temem a falta de honrarias e a vida inglória, como se dá com os amantes do poder e das distinções. Não é essa a razão de se absterem de tudo."

"É que toda alma humana, nos casos do prazer ou de sofrimento intensos, é forçosamente levada a crer que o objeto causador de semelhante emoção é o que há de mais claro e verdadeiro, quando, de fato, não é assim."

"Porque os prazeres e os sofrimentos são como que dotados de um cravo com o qual se transfixam a alma e a prendem ao corpo, deixando-a corpórea e levando-a a acreditar que tudo o que o corpo diz é verdadeiro."

"...logo depois, [a alma] volta a cair noutro corpo, onde cria raízes como se tivesse sido semeada nele, ficando de todo alheia da companhia do divino, do que é puro e de uma só forma."

"A alma do filósofo não raciocina desse jeito, nem pensa que a filosofia deve libertá-lo, para depois de livre, entregar-se de novo aos prazeres e às dores e voltar a acorrentar-se, deixando írrito seu esforço anterior e como que empenhada em fazer o inverso do trabalho de Penélope em sua teia. Ao contrário: Alcançando a calmaria das paixões e guiando-se pela razão, sem nunca a abandonar, contempla e se nutre do que é verdadeiro e divino e que paira acima das opiniões, certa de que precisará viver a vida assim, a vida toda, para, depois da morte, unir-se ao que lhe for aparentado e da mesma natureza, liberta das misérias humanas."

"Nisto, por conseguinte, antes de mais nada, é que o filósofo se diferencia dos demais homens: no empenho de tirar quanto possível a alma da companhia do corpo."

"Ora, a alma pensa melhor quando nada disso tem a perturbá-la, nem a vista, nem o ouvido, nem dor, nem prazer de nenhuma espécie, e, concentrada ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a verdade."

"e a temperança: Não deixa-se dominar pelos apetites, porém desprezá-los e revelar moderação, não será qualidade apenas das pessoas que em grau eminentíssimo desdenham do corpo e vivem para a filosofia?"

"Essa não é a maneria correta de alcançar a virtude: Trocar uns prazeres por outros, tristezas por tristezas, ou temores por temores de outra espécie, como trocamos em miúdos moedas de maior valor? Só há uma moeda verdadeira pela qual tudo isso deva ser trocado: Sabedoria."

"Para não ficarmos misólogos, disse, como outros ficam misantropos. O que de pior pode acontecer a qualquer pessoa é tornar-se inimigo da palavra. A misologia e a misantropia têm a mesma origem. O ódio ao homem nasce do excesso de confiança sem razão de ser, quando consideramos alguém fiel, sincero e verdadeiro, e logo depois descobrimos que se trata de pessoa corrupta e desleal, e depois outra mais nas mesmas condições. Vindo isso a repetir-se várias vezes com o mesmo paciente, principalmente se se tratar de amigos íntimos e companheiros de alto crédito, depois de decepções seguidas, acaba essa pessoa por odiar os homens e acreditar que ninguém é sincero. Nunca observaste que é assim mesmo que as coisas se passam?
- Sem dúvida, respondi.
E não é isso deprimente? Continuou. Pois é claro que esse indivíduo procura o convívio de seus semelhantes sem conhecer devidamente a natureza humana, pois, se dispusesse de alguma experiência nas suas relações com eles, teria compreendido como é realmente o mundo, isto é, que são poucos os indivíduos inteiramente bons ou maus de todo, e que a maioria constitui o meio-termo."

"Tudo o que leva a ideia do contrário da coisa que o recebe, não admite nesta o contrário daquilo que ele leva."

"A alma dá vida e não admite o contrário da vida, logo é imortal, mesmo dando vida ao que é perecível."

"Precisamos tudo fazer para em vida adquirir virtude e sabedoria, pois bela é a recompensa e infinitamente grande a esperança."

"Pode tranquilizar-se com relação à sua alma o homem que passou a vida sem dar o menor apreço aos prazeres do corpo."

"Todo entregue aos deleites da instrução, com os quais adornava a alma, não como se o fizesse com algo estranho a ele, porém como jóias da mais feliz indicação: temperança, justiça, nobreza e verdade, espera o momento de partir para o Hades quando o destino a convocar."

Referências:
Platão. Fédon. trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. UFPA, 2011.

Em breve postaremos mais sobre o lançamento de um livro acerca da ética ensinada pelos antigos filósofos em diálogo com diferentes tradições espirituais.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

As Formas-Pensamento




"Cada pensamento do homem, ao se desenvolver, passa para o mundo interno e se torna uma entidade ativa ao se associar - amalgamando-se, poderíamos dizer nesses termos - a um elemental; isto é, uma das forças semi-inteligentes dos reinos. Ele sobrevive como uma inteligência ativa, uma criatura produzida pela mente, por um período longo ou curto, conforme a intensidade da ação cerebral que o produziu. Portanto, um bom pensamento é perpetuado como um poder benéfico e ativo; um pensamento maléfico como um demônio maléfico. Assim o homem continuamente preenche o ambiente ao seu redor com um mundo de sua própria criação, povoado com a prole de suas fantasias, desejos, impulsos e paixões, uma corrente que reage sobre qualquer organismo sensível ou/e agitável com o qual entra em contato na proporção de sua intensidade dinâmica." (A.P. SInnett - Occult World, p.130; Também em: Mahatma Letters to A.P. Sinnett, pp.70-71, edição de Pasadena).

Blavatsky sobre Atma-Buddhi-Manas na D.S. vol.1



Trechos sobre Atma-Buddhi-Manas no volume 1 de A Doutrina Secreta.


H.P.B. 



"O astral, por meio de kama (o desejo), atrai continuamente manas para a esfera das paixões e desejos materiais. Mas se o homem melhor, ou manas, se esforça por escapar à atração fatal, e orienta suas aspirações para Atman (Neshamah), então buddhi (ruach) vence, levando consigo manas para o Reino da Espírito Eterno."  (D.S. Vol. 1, p.278) 


" o corpo segue os impulsos, bons ou maus, de manas; manas procura seguir a luz de buddhi, mas frequentemente falha. Buddhi é o molde das "vestes" de Atman, pois Atman não é o corpo, nem forma, nem coisa, e buddhi não é o seu veículo senão em sentido figurado." (D.S. Vol. 1, p. 278). 


quarta-feira, 24 de junho de 2020

Notas sobre o Karma - Lamrim ChenMo (Je Tsongkhapa)

As Características Gerais do Karma 

Seleção de passagens sobre o Karma nos capítulos 13 e 14 do  Lamrim ChenMo de Je Tsongkhapa


Je Tsongkhapa


Neste ponto tenha domínio sobre as classificações de virtude e não-virtude, bem como os seus efeitos. Deve fazer de sua prática a adoção e a retirada apropriadas de virtudes e não-virtudes, respectivamente. 

 • Pois, a não ser que reflita sobre os dois tipos de karma e os seus efeitos e, então, abandone a não-virtude e adote a virtude, não interromperá as causas de renascimentos miseráveis, e mesmo temendo os reinos miseráveis, não será capaz de escapar daquilo que teme.  

• É necessário ter convicção acerca do karma e de seus efeitos.  

• Há quatro modos de refletir sobre o karma e os seus efeitos: • 1. A certeza do karma. • 2. A intensificação do karma. • 3. Não experienciar efeitos de ações que você não cometeu. • 4. As ações que você cometeu não perecem.

1. A certeza do Karma  

• Toda felicidade no sentido de sensações de alívio ou agradáveis surge de karma virtuoso previamente acumulado.  

• É impossível obter felicidade a partir de karma não-virtuoso.  

• Todos os sofrimentos no sentido de sensações dolorosas, incluindo mesmo o sofrimento mais sutil que ocorre na mente de um Arhat, surge de karma não-virtuoso previamente acumulado.
  
• É impossível obter sofrimento a partir do karma virtuoso.  

• Das não-virtudes advêm todos os sofrimentos e quedas em reinos miseráveis. Das virtudes advêm todas alegrias e renascimentos em reinos auspiciosos. 

• Consequentemente, a felicidade e o sofrimento não ocorrem na ausência de causas, nem surgem de causas incompatíveis, tais como um criador divino ou uma essência primeva. 

 • Pelo contrário, a felicidade e o sofrimento, em geral, advêm do karma virtuoso e não-virtuoso, e cada felicidade e sofrimento particular surgem individualmente, sem mesmo uma mínima confusão dentre as várias instâncias particulares desse tipo de karma.  

• Alcançar certo conhecimento acerca do caráter certo ou não-enganoso do karma e seus efeitos é uma perspectiva correta para todos os budistas e é considerado como o fundamento de toda virtude.  

2. A intensificação do Karma 

• Um efeito de imensa felicidade pode surgir mesmo de um pequeno karma virtuoso. 

 • Um efeito de imenso sofrimento pode surgir mesmo de um pequeno karma não-virtuoso.  

Portanto, a causalidade karmica interna parece envolver uma intensificação que não é encontrada na causalidade externa.  Como um veneno que foi ingerido, a prática de mesmo uma pequena ação não-virtuosa cria em nossas vidas grande medo e pode levar uma queda terrível.

Assim como o grão amadurece numa recompensa, mesmo a criação de um mérito pequeno pode levar a vidas futuras de grande felicidade e será imensamente significativo também.

• É pelo acúmulo de gotas d’água que um grande vazo gradualmente se enche. Da mesma forma um tolo acaba preenchido de não virtude acumulada de pouco em pouco. E assim funcionada com os perseverantes e a virtude.  

• Mesmo que agora ignore tais assuntos, em vidas futuras experienciará os seus efeitos.  

• Aqueles que não treinam em generosidade, shila e daí por diante poderão ter contato com boas linhagens, bons corpos e boa saúde e podem ter grande poder e riqueza enorme, mas não encontrarão a felicidade em vidas futuras.  

• Após ter obtido a certeza de que o karma virtuoso e não virtuoso dão origem à felicidade e ao sofrimento, elimine as não-virtudes e esforce-se em ações virtuosas. Os que não tiverem fé que façam como quiserem. 

3. Não experienciar os efeitos de ações não cometidas  

• Se não tiver acumulado o karma que é a causa para uma experiência de felicidade ou sofrimento, você não experienciará a felicidade ou sofrimento que é o seu efeito.

4. As ações cometidas não perecem (sempre têm efeitos) 

 • Aqueles que cometem ações virtuosas e não-virtuosas criam efeitos agradáveis e desagradáveis. Como dito no Dharma-Raja-Samadhi sutra: “Uma vez cometida uma ação, você experienciará os seus efeitos e não experienciará os efeitos de outros.”

 • As Bases do Vinaya diz: Mesmo numa centena de eras, o Karma não perece. Quando as circunstâncias e o tempo certo chegam, os seres certamente sentem os seus efeitos. 

As Variações do Karma 

  Há três modos de se envolver em condutas boas e ruins – fisicamente, verbalmente e mentalmente. 

• O Buddha, o Bhagavan, resumiu essa doutrina no ensinamento das dez ações não- virtuosas e virtuosas. 

• O Buddha viu que quando se abandona as dez ações não virtuosas, adota-se as ações virtuosas. 

• Se praticar esses três caminhos de ação – guardando a sua fala, restringindo-se mentalmente e não cometendo ações não-virtuosas – você alcançará o caminho ensinado pelo Sábio. 

• Conhecendo os dez caminhos de ações não-virtuosas, restrinja-se até mesmo da motivação de cometê-las. 

• Esta prática é indispensável como a base para todos os três veículos (hinayana, mahayana, vajrayana). 

• Os caminhos das dez ações virtuosas são fontes de nascimentos humanos ou divinos, da iluminação dos realizadores solitários (pratyekabuddhas) e de todas ações dos Bodhisattvas, assim como das qualidades de um Buddha. 

• Não há causas de boas condições ou bom status senão shila (harmonia) 

• Continuamente guarde a sua shila, mantendo um senso de contenção. 

• Há pessoas que não praticam tal contenção mesmo em relação a uma única prática de shila, mas ainda assim dizem: “sou um praticante do Mahayana.” Isso é muito indigno. 

• O Sutra de Ksitigarbha diz: “Por meio desses dez caminhos de virtude, você se tornará um Buddha. Entretanto, há aqueles que, por toda a sua vida, não mantêm minimamente um único caminho de ação virtuosa, mas que dizem coisas tais como: “sou uma praticante Mahayana; busco a iluminação perfeita e insuperável.” Tais pessoas são grandes hipócritas e mentirosas. Eles enganam o mundo na presença de todos os Buddhas e pregam o niilismo. Ao morrer, eles parecem confusos e caem novamente (num renascimento inferior).

As Dez ações não virtuosas:  
1. Matar; 
2. Roubar;
3. Conduta sexual inadequada;
4. Mentir;
5. Discurso divisor/discórdia;
6. Discurso ofensivo/ fala agressiva;
7. Discurso sem sentido/ Tagarelice/ Fofoca;
8. Cobiça/avareza;
9. Malícia/ Desejar o mal;
10. Visões errôneas.

• Cada uma dessas ações pode variar de acordo com o grau de intensidade e o contexto que são realizadas. Por exemplo, sacrificar outros seres em rituais religiosos (animais ou humanos) devido à visão errônea de achar que um criador gerou seres para serem usados, podendo até mesmo sacrificar um arhat ou tentar matar um Buddha constitui um tipo de matar muito mais pesado e danoso que matar por acidente. 

• Causar divisões ou discórdia entre buscadores do Dharma também é uma falta grave. 

• Não é possível superar as não-virtudes sem arrepender-se, confessá-las e comprometer-se a não repetí-las.

 •  Também há variações de peso no caso das ações virtuosas. Dar o Dharma com a intenção de auxiliar os seres sencientes e alcançar o Budado é vastamente superior à doação de coisas materiais. 

• Ao praticar as dez ações virtuosas por meio da compreensão da originação-dependente, o nível de um pratyekabuddha (realizador-solitário) é alcançado. 

• Quando se cultiva as dez ações virtuosas com grande compaixão, métodos habilidosos e aspiração de não abandonar os seres sencientes, focando-se na sabedoria vasta e sublime de um Buddha, alcança-se o nível de um bodhisattva e todas as perfeições. Por essa prática em todas as situações, alcançam-se as qualidades de um Buddha.  

•Ações não virtuosas criam mesmo em renascimentos afortunados efeitos tais como  um tempo de vida curto, muitas doenças e miséria.  

• Entenda que as ações virtuosas e não-virtuosas projetam o nascimento em reinos felizes e em reinos miseráveis, respectivamente.

•O karma consumado (maduro) é aquele por meio do qual se experiencia o desejado e o indesejado.

• Asanga (Abhidharmasamuccaya) fala em quatro tipos de Karma:
1. um único instante de uma ação que  acumula uma semente (tendência/samskara) a se desenvolver numa única vida;
2. uma ação que acumula uma semente a ser desenvolvida em muitas vidas;
3. muitos instantes de uma ação contínua que acumula uma semente para apenas um corpo (uma vida);
4. e muitas ações mutuamente dependentes que acumulam sementes para muitos corpos em uma sucessão de vidas.

• O karma cujo resultado se experiencia definitivamente é aquele conscientemente gerado e acumulado. Karma cujo resultado não necessariamente será experienciado é aquele conscientemente gerado, mas não acumulado. 

• Há uma distinção entre karma gerado e karma acumulado (Yogacarabhumi -Asanga): 

O que é karma gerado? É um pensamento (ação de mente) ou uma ação desempenhada verbalmente (ação de fala) ou fisicamente (ação de corpo). 

• Karma acumulado é aquele que NÃO  se enquadra nestes dez tipos de ações:
1.ações realizadas em sonhos;
2.ações realizadas sem saber (e sem intencionalidade) de que causam danos;
3. Realizadas inconscientemente;
4. feitas sem intensidade ou não-continuamente;
5.feitas por engano;
6. feitas devido ao esquecimento;
7.feitas sem querer;
8. ações eticamente neutras;
9.ações erradicadas por meio do arrependimento;
10. erradicadas por um antídoto.

• Essas ações têm efeitos e consequências, mas não necessariamente se acumulam no continuum mental como samskaras/tendências por não terem a intencionalidade ligada ao poder do apego e da aversão.  

• Karma experienciado após ter renascido é o efeito de ações acumuladas a serem experienciadas na próxima vida após a ação em questão. Karma experienciado em outros períodos é o efeito de ações que amadurecerão durante ou após o terceiro nascimento após a ação em questão.  

• O modo como os muitos karmas virtuosos e não-virtuosos acumulados em seu fluxo mental amadurecem:

• (1) O karma mais intenso amadurecerá primeiro. 
• (2) se a intensidade/peso dos karmas é igual, então, qualquer karma manifesto na hora da morte amadurecerá primeiro. 
• (3) Se também houver equivalência entre os karmas nessa situação, aquele karma com o qual se tornou predominantemente mais habituado amadurecerá primeiro. 
 • (4) Se não houver um karma mais predominante que outro, então, aquele gerado primeiro amadurecerá primeiro.  
• É certo que você alcançará um bom corpo e uma boa mente ao abandonar as dez ações não-virtuosas. Se conseguir gerar as condições para um corpo e uma mente plenamente qualificados, então acelerará o seu cultivo do Dharma como nada mais poderia. Portanto, busque tal estilo de vida.    
• Outras atitudes puras incluem: abandonar o ciúmes, a competitividade, o desprezo quando vê outros praticantes do ensinamento que são superiores, iguais ou inferiores a você, admirando-os.

 • Mesmo que seja incapaz de fazer o que é dito acima, discernir por muitas vezes durante o dia de que deve fazê-lo.

(Seleção e tradução por Bruno Carlucci em junho de 2020).

Referências:

Lamrim ChenMo vol. 1- Tsongkhapa (trad. em inglês -The Great Treatise on the Stages of the Path to Enlightenment - Volume 1). Lamrim ChenMo Translation Comittee.


segunda-feira, 18 de maio de 2020

O que é Teosofia

"A Teosofia é, então, a Sabedoria arcaica, a doutrina esotérica outrora conhecida em todo país antigo que pudesse se reivindicar como civilização. Esta "Sabedoria" mostram-nos os escritos antigos como uma emanação do Princípio divino; e a clara compreensão disto está tipificada em nomes como o Budh indiano, o Nebo babilônico, o Thoth de Memphis, o Hermes da Grécia; nas apelações, também, de algumas deusas -- Metis, Neitha, Athena, a Sophia gnóstica, e, por fim, nos Vedas, da palavra 'saber'." (Blavatsky, A Modern Panarion, p.263).


sexta-feira, 15 de maio de 2020

A Teosofia no século XXI

A Teosofia no Século XXI

Bruno Carlucci 




Num documento para a fundação da Seção Esotérica, hoje publicamente acessível em inglês (e em português) internet afora, Blavatsky, em sua tentativa de abrir uma porta para estudantes mais seriamente comprometidos com os ideais e o estudo da teosofia, esclarece o seguinte:

"Nenhum Mestre de Sabedoria do Oriente aparecerá ou enviará qualquer emissário à Europa ou América após esse período [31 de dezembro de 1899]...até o ano de 1975. Tal é a Lei pois estamos no Kali Yuga   - a Idade Negra - e as limitações deste ciclo, o primeiro cujos 5000 anos terminarão em 1897 são grandes e quase insuperáveis." (Blavatsky em seu memorando preliminar à Seção Esotérica. Trechos de tradução publicada pelo Círculo Blavatsky [CIBLA], Ano 01, 02, 1988). 

Nas cartas dos Mahatmas fica bem claro que Blavatsky era o ponto de contato deles com a Sociedade Teosófica e que após a sua morte, membros da Sociedade Teosófica (ou qualquer outra instituição) não teriam mais as facilidades de acesso a eles que (alguns) tiveram por meio de suas cartas.  

A base do ensinamento a ser disseminado pela Sociedade Teosófica são as obras escritas e editadas sob os auspícios desses Mahatmas. Obras, que embora não sejam perfeitas, pois seus escritores e editores, tais como Blavatsky (a mais avançada dentre eles e o ponto real de conexão dos Mestres com o restante da Sociedade, uma verdadeira Iniciada) não tinham a mesma estatura espiritual deles, ainda assim são o que de mais profundo há nessa literatura. Esta é a base para o pensamento teosófico moderno, os preceitos e princípios que expõem o norte da Religião-Sabedoria, seus ensinamentos fundamentais, as leis fundamentais e a ética necessária para quem aspira à senda gradual que leva à Sabedoria. 

Isso não significa se fechar num dogmatismo que ignora contribuições posteriores e importantes de muitos autores teosóficos que se mantiveram coerentes com a literatura original, nem ignorar tradições anteriores, fundadas por indivíduos de estatura espiritual ainda mais elevada que a da fundadora da Sociedade e citadas por ela e seus Mestres. Pois nunca foi o propósito que a Teosofia se encarcerasse numa igreja, num culto, nem que a Sociedade Teosófica (ou qualquer outro grupo teosófico) se apresentasse como o único caminho possível, mas que servisse de ponte para investigar e auxiliar no estudo das várias tradições que estão ligadas à Religião-Sabedoria. O propósito é que a teosofia seja mais uma vela, dentre outras velas, em meio a um mundo dominado pelas trevas do materialismo.  

Se houve um esforço dos Mahatmas após 1975, provavelmente foi por outros caminhos, em outras roupagens, de acordo com o que a humanidade precisava durante a transição do século XX para o XXI e, também, do que era mais viável e mais adequado para o momento. Porém, isso não anula o bem que o estudo da teosofia e que grupos teosóficos comprometidos com esse estudo ainda possam fazer (e fazem) para as pessoas. 

Aspirar aos degraus da escada de ouro e meditar sobre eles, aliado ao estudo cuidadoso da literatura original e das tradições por ela citadas, é uma boa prática a ser buscada por cada um, seja em sua busca individual ou em grupo, que almeja se conectar com a teosofia. Pois embora instituições, grupos, textos, tradições se percam com os movimentos da história, a Religião-Sabedoria é sempre a mesma e suas regras e preceitos nunca mudam: 

 1. Vida limpa.
 2. Mente aberta.
 3. Coração puro.
 4. Intelecto ardente.
 5. Clara percepção espiritual.
 6. Afeto fraternal para com todos.
 7. Presteza para dar e receber conselho e instrução.
 8. Leal senso de dever para com o instrutor. 
 9. Pronta obediência aos preceitos da Verdade.
10. Corajoso suportar das injustiças pessoais.
11. Destemida declaração de princípios. 
12. Valente defesa daqueles que são injustamente atacados.
13. Mira constante no ideal de progresso e perfeição humanos. 

(Tradução de A Escada de Ouro publicada pelo Círculo Blavatsky [CIBLA], Ano 01, 02, 1988). 


quinta-feira, 14 de maio de 2020

Plotino e as Proposições Fundamentais de “A Doutrina Secreta”

Plotino e as Proposições Fundamentais de “A Doutrina Secreta”


Rafael Nascimento*


TheoSophia

A Filosofia Esotérica não se caracteriza por ser velha! Ela não é um corpo de conhecimento inerte, caído em desuso, capaz de encontrar ressonância apenas nas mentes arcaicas ou lunáticas. Pelo contrário. A TheoSophia consiste em um sistema capaz de transformar nossa percepção embotada da realidade ordinária, expandindo nossa consciência, nos direcionando com segurança em uma caminhada que tem por objetivo a percepção da Verdade em todos os seus níveis. Ela se mantém atual, pois lança luz nos problemas mais urgentes e profundos do planeta: egoísmo, ganância, segregacionismo, dores e sofrimentos de todos os tipos, frutos da grande ignorância que assola a pobre e órfã humanidade. Mesmo assim ela não deixa de ser antiga, pois existe desde os primórdios do mundo, consistindo no próprio sistema de leis naturais (Gupta Vidya) que trouxeram nosso universo à manifestação. Um conjunto de Sábios, os grandes Magos, Mestres e Gurus de todas as eras, versados nesta filosofia, ensinam sua Doutrina Secreta aos que se encontram preparados. Por isso, disse Blavatsky: “Tais verdades não são, de modo algum, expostas com caráter de revelação; nem a autora tem a pretensão de se fazer passar por uma reveladora de conhecimentos místicos que fossem agora trazidos à luz pela primeira vez na história. A matéria contida nesta obra pode-se encontrar esparsa nos milhares de volumes que encerram as Escrituras das grandes religiões asiáticas e das primitivas religiões europeias – oculta sob hieróglifos e símbolos, e até então despercebida por causa desse véu.” (A Doutrina Secreta Vol. I) 

Dois autores e uma Verdade

Helena Petrovna Blavatsky nasceu em 12 de agosto de 1831 em Dnepropetrovsk, Ucrânia, e morreu no dia 8 de maio em Londres, na sede europeia da Sociedade Teosófica, situada na Avenue Road, número 19.

Helena casou-se, em 1849, com Nikifor Blavatsky, de quem herdou seu conhecido sobrenome, mas pouco tempo depois deixou seu marido e viajou pela Turquia, Grécia, Egito e França. Em 1951, encontrou seu Mestre em Londres, fato que mudaria drasticamente os rumos de sua vida. Andou pelo mundo e em meados da década de 1860, enquanto viajava entre tribos nativas do Cáucaso, enfrentou graves crises físicas e psíquicas, adquirindo controle completo sobre seus poderes ocultos, manifestados desde a infância.

Em 1868, partiu para o Tibet com seu Mestre. Anos mais tarde, em 1873, desembarcou em Nova York. Conheceu Henry Steel Olcott em 1874 e, em 1875, fundou a Sociedade Teosófica no dia 8 de setembro com Olcott, William Q. Judge e outros. Cel. Olcott fez o discurso inaugural em 17 de novembro. Em 19 de dezembro de 1882, transferiu a sede da Sociedade Teosófica de Nova York para Adyar, Madras (atual Chennai), na Índia, fixando assim a sede internacional da S.T.

Suas principais obras são “Isis sem Véu” (1877), “A Doutrina Secreta” (1888), “A Chave para a Teosofia” (1889) e “A Voz do Silêncio” (1889). Lançou sua primeira revista, “The Theosophist”, em 1879 e sua segunda, “Lucifer”, em 1887. 

Devemos a Blavatsky, figura extraordinária e devotada trabalhadora, a eclosão do movimento teosófico moderno do ponto de vista externo.

Plotino viveu de 205 a 270 d. C., nasceu em Licópolis, no Egito, e morreu em Roma. Pouco se sabe sobre sua vida. Seu discípulo, Porfírio, que também trabalhou como seu editor e biógrafo, conta que o “pai do neoplatonismo” nunca quisera que soubessem o local exato de seu nascimento, a data e sua filiação. Alguns autores afirmam que seus pais eram egípcios helenizados; outros, que eram romanos, mas devido aos pouquíssimos dados biográficos, estas são afirmações incertas. Plotino se negava a ter sua imagem retratada ou esculpida, porém outro de seus discípulos levou até ele, sem que ele soubesse, o maior retratista da época que em seguida desenhou-o de memória.

Aos 28 anos, Plotino mudou-se para Alexandria, maior centro cultural, filosófico e religioso da época, para que pudesse estudar. Despois de escutar vários expositores sem encontrar o que desejava, decepcionado, foi apresentado a Amônio Sacas (175-242 d.C.), historicamente o criador do vocábulo “TheoSophia”, e encantado com as exposições de seu futuro mestre, exclamou, segundo dizem: “Eis o homem que eu procurava”. Desde então, sucederam 11 anos de discipulado fiel até a morte de seu mestre, Amônio Sacas, que não deixou textos escritos e cujos discípulos comprometeram-se a não divulgar seus ensinamentos abertamente para que não fossem profanados. 

Com a morte de Amônio Sacas, Plotino, com 39 anos, decide juntar-se ao exército do imperador romano Górdio III, que partia em direção ao Oriente para combater os avanços do Rei persa Sapor I na Mesopotâmia. Sua intenção era entrar em contato direto com a sabedoria persa e hindu, pelas quais nutria profunda admiração, provavelmente infundida por Amônio.

Plotino começou a escrever aos 49 anos, após vinte anos de estudo e ensino de filosofia. Deixou 54 tratados que foram agrupados e editados por Porfírio em seis capítulos, compostos de nove tratados cada, intitulados, assim, de “Enéadas”.

A Sabedoria Antiga, resgatada e divulgada para o ocidente nos tempos modernos por H.P.B., foi chamada por ela de TheoSophia, ou Teosofia. Sendo assim, é clara a referência à escola de Amônio Sacas, na qual Plotino era um dos grandes discípulos iniciados. Dois autores, épocas distintas, uma só Verdade!

As Três Proposições Fundamentais
Blavatsky afirma no magistral proêmio que antecede as “Estâncias do Livro Secreto de Dzyan”, no Vol. I de “A Doutrina Secreta”, que antes que o leitor tome conhecimento das Estâncias, é de fundamental importância que ele apreenda três conceitos fundamentais “que informam e interpenetram todo o sistema de pensamento para o qual sua atenção vai ser dirigida”:

I.        Um Princípio Onipresente, Sem limites e Imutável, sobre o qual toda especulação é impossível, porque transcende o poder da concepção humana e porque toda expressão ou comparação da mente humana não poderia senão diminuí-lo. Está além do horizonte e do alcance do pensamento, ou, segundo as palavras do Mândûkya, é “inconcebível e inefável”. (...)

II.        A Eternidade do Universo in toto como plano sem limites; periodicamente “cenário de Universos inumeráveis, manifestando-se e desaparecendo constantemente”, chamados “as Estrelas que se manifestam” e “as Centelhas da Eternidade”. “A Eternidade do Peregrino” é como um abrir e fechar de olhos da Existência-por-si-mesma, segundo o Livro de Dzyan. “O aparecimento e o desaparecimento de Mundos são como o fluxo e o refluxo periódico das marés.” (...)

III.        A identidade fundamental de todas as Almas com a Alma Suprema Universal, sendo esta última um aspecto da Raiz Desconhecida; e a peregrinação obrigatória para todas as Almas, centelhas daquela Alma Suprema, através do Ciclo de encarnação ou de Necessidade, durante todo esse período. (...) (Vol. I)

A relação entre as Proposições e os ensinamentos de Plotino

Plotino ensinou sobre coisas diversas: o belo, a dialética, a origem dos seres. Entretanto, toda sua obra é norteada pelo conceito fundamental da Unidade Suprema de todas as coisas, ou o Uno, sendo simples e princípio que transcende a dualidade e todos os números, como a origem comum do que é múltiplo em manifestação: “O número, a quantidade, não é o primeiro (princípio). Evidentemente, antes da dualidade está a Unidade” (Plotino – As três Hipóstases Iniciais).

Como Platão, Plotino sustentava que o mundo das formas tinha sua origem no plano das Ideias, o númeno antecede o fenômeno, e que todas as formas materiais são moldadas a partir de uma Forma Ideal (Plano das Ideias). “Quando percebemos nos corpos uma Forma Ideal (eidos) que molda e domina a matéria informe – contrária à Forma Ideal – como uma Forma Ideal que se destaca e subordina as outras formas, apreendemos num único olhar a unidade que emerge da multiplicidade , a remetemos à unidade interior e indivisível, e entre ambas há concórdia e comunhão” (Sobre o Belo). 

Mas Plotino, em seu tratado Sobre a descida da Alma nos corpos, diz que “Tem de haver algo além da Unidade. Do contrário, todas as coisas teriam permanecido potenciais, desprovidas de forma. (...) Essa força não pode ser detida ou circunscrita por um ato de auto-apropriação (...)”, ou como propôs H.P.B., há “Um Princípio Onipresente, Sem limites e Imutável, sobre o qual toda especulação é impossível, porque transcende o poder da concepção humana e porque toda expressão ou comparação da mente humana não poderia senão diminuí-lo” – é a Raiz sem raiz de todas as coisas.

A segunda Proposição nos ensina a eternidade do Universo em essência, mas que sua manifestação é periódica como o fluxo das marés, manvantara e pralaya, atividade e dissolução. Analogamente, Plotino diz que “se alguém admira este mundo perceptível, observando sua dimensão, sua beleza, a ordem de seu incessante curso, os deuses que há nele – alguns dos quais são visíveis e outros invisíveis -, os espíritos e todos os animais e plantas, então que se eleve ao arquetípico dele (deste mundo perceptível), a uma realidade ainda mais verdadeira, e ali veja todas essas coisas de maneira inteligível e eterna, com sua própria consciência e vida (...). No entanto, também temos que incluir o Movimento e o Repouso. O movimento provém da alteridade do ato intelectual; e o repouso provém de sua identidade: para que possa haver o pensador e o pensamento; pois se a alteridade for excluída, haverá apenas o Uno e Silêncio”. (As Três Hipóstases Iniciais).

Por fim, como é dito na terceira Proposição Fundamental de A Doutrina Secreta, há uma profunda identidade entre nossas almas individuais e a Suprema Alma Universal. Plotino vê na contemplação do belo, a beleza da alma, um instrumento de elevação, já que o belo tem sua origem no Uno. “Caminhemos então em direção à origem e indiquemos o princípio que concede beleza às coisas materiais. Sem dúvida esse princípio existe. É algo perceptível ao primeiro olhar, algo que a alma reconhece a partir de um antigo conhecimento e, ao reconhecê-lo, acolhe-o e entra em ressonância com ele. (...) Então, precisamos subir de novo em direção ao Bem, para o qual tende o desejo de todas as Almas” (Sobre o Belo)

E a peregrinação obrigatória para todas as Almas, centelhas daquela Alma Suprema, através do Ciclo de encarnação ou de Necessidade? “Devemos recorrer ao divino Platão, que em muitas passagens de seus diálogos disse muitas coisas a respeito da alma (psykhé) e de sua descida no corpo (...). Diz que a Alma está acorrentada e sepultada nele (o corpo), qualificando como uma grande verdade a doutrina exposta nos mistérios de que aqui a Alma está numa prisão. Ademais, a meu ver, a caverna para ele, assim como o antro para Empédocles, significam este mundo (sensível), pois Platão interpreta a libertação das cadeias e a subida para fora da caverna como a jornada da Alma em direção ao Mundo Inteligível” (Plotino – Sobre a descida das Almas nos corpos).

Concluímos que a Teosofia, como afirmamos anteriormente e pudemos, mesmo que de modo breve e sucinto explanar, é atemporal, embora antiga como a história da humanidade e da formação dos globos de nossa cadeia planetária. Grandes instrutores guardam estes ensinamentos, que constituem o germe de toda filosofia e corrente de pensamento. Ensinam de tempos em tempos para que nossas almas recordem sua origem, e como afirmou “a glória da filosofia antiga”, Plotino, “advém daí que as almas individuais têm um desejo intelectivo de retornar ao princípio de que provieram”. 

Muitos séculos depois, Helena Blavatsky trabalhou intensamente por nos inspirar, para que nossas almas se tornem desejosas pelo retorno, concluindo o ciclo da Necessidade.

“O Mundo Arquetípico é a verdadeira Idade de Ouro” - Plotino

*Rafael Nascimento é membro da Sociedade Teosófica no Brasil, atua na Loja Unicidade em Cataguases (MG).