Reencarnação x Renascimento no Budismo - Questões de Tradução
Bruno Carlucci
Pensando em questões de tradução de textos budistas, é curioso como a palavra "reencarnação" nos meios budistas brasileiros gera tanta polêmica, eu mesmo só utilizo e prefiro a palavra "renascimento". Mas esses dias vi um texto (feito por brasileiros) criticando os ocidentais que dizem haver "reencarnação" no budismo tibetano. Se olharmos as traduções de lígua inglesa, o próprio Dalai Lama atual usa ambas as palavras "reincarnation" e "rebirth" sem problemas em suas conversas e entrevistas. A noção de "Tulku", isto é, do reconhecimento de um "Lama" renascido (ou reencarnado) numa nova vida é um dos alicerces do budismo tibetano.
No caso da escolha dos Dalai Lamas, isso é até chamado de "politics of reincarnation". Basta uma pesquisa simples, as ocorrências da palavra "reincarnation" nesse contexto dos "tulkus" são muito maiores do que da palavra "rebirth". Glenn Mullin, tradutor do Dalai Lama e biógrafo dos Dalai Lamas anteriores, usa a palavra "reincarnation" sem problema em suas obras.
Num livro sobre a história da antiga escola Kadampa, editado por Thubten Jinpa, outro tradutor do Dalai Lama, também há o emprego abundante da palavra "reincarnation". O estudioso renomado e tradutor de tibetano, Alexander Berzin, adota "reincarnation" e "rebirth" como sinônimos. Mesmo no Brasil, há Lamas que adotam a palavra "reencarnação". O Lama Michel Rinpoche usa a palavra "reencarnação", ao invés de "renascimento". O Monge Thubten do canal Amigo Monge (escola Gelugpa) também usa a palavra "reencarnação" sem problemas em seus vídeos.
O Centro budista Gelugpa Shiwa Lha, vinculado à Fundação de Preservação da Tradição Mahayana, também usa a palavra "reencarnação". Não há uma palavra em sânscrito que corresponda exatamente a renascimento, reencarnação, metempsicose, ou transmigração.
A palavra samsara se refere a um perambular, a um ciclo repetitivo de nascimento, envelhecimento, adoecimento, morte. Tentar proscrever traduções possíveis dessa ideia acaba servindo como uma boa fonte de confusão, já que em termos bem superficiais e mais gerais, a noção de que todo mundo viveu antes e vai viver de novo, de alguma forma, é algo comum entre as diferentes tradições religiosas chamadas de "reencarnacionistas" e pode servir de ponte de diálogo entre elas.
O que muda em cada uma dessas religiões é a forma como o processo se dá (e isso pode diferir bastante): se é uma "evolução" linear ou se é um processo cíclico, se é voluntário ou compulsório, se é desejável seguir com o acúmulo de experiências ou se é melhor buscar se libertar do ciclo e ganhar autonomia sobre o processo, se é possível ou não nascer como um humano numa vida e como outra espécie de animal ou outro tipo de ser, se é possível acessar as memórias ou não, o quanto nossas ações (karma) moldam o processo, se o que nasce continuamente é um espírito, uma alma, um "eu" ou personalidade fixa, ou se é um fluxo mental ou mente sutil, e como se dá o processo intermediário entre um nascimento e outro etc. Mas palavra reencarnação em si não está fehada para uma única explicação do processo. Não tem um significado inerente e, portanto, pode ser usada pelo budismo, mesmo não havendo o conceito de um espírito que renasce, mas, sim, de um fluxo mental. A ideia de que passamos por várias vidas e de que o nosso karma, as nossas ações, a nossa responsabilidade, nos direciona para determinadas circunstâncias e ter de enfrentar determinadas consequência é o ponto importante a ser apreendido, seja chamando tal processo de reencarnação ou de renascimento. Assim como a possibilidade de poder se libertar da compulsoriedade deste processo é outro ponto essencial para o budismo, tal é a libertação do samsara.
*Texto originalmente publicado por Bruno Carlucci no Facebook em fevereiro de 2022.