Sobre o novo escândalo envolvendo o atual e XIV Dalai Lama, a sua suposta tentativa de dar um beijo de língua numa criança, concordo com o Amigo Monge (alguém que convive com tibetanos há décadas, fala a língua e tem muita familiaridade com a cultura): Não há justificativa cultural.
O escândalo começou a circular na mídia indiana e no Twitter antes de ter atenção da mídia ocidental, que é sempre muito reticente em criticar o D.L., erroneamente pintado por ela como um Papa do budismo. O budismo tibetano tem muitas escolas e sub-escolas, linhagens e o Dalai Lama não dita, nem necessariamente segue, nem determina ou não deveria determinar o que as diferentes escolas podem ou não praticar e como devem ou não organizar as suas respectivas linhagens. Em tese, ele nem seria a autoridade máxima de sua escola, a Escola Gelugpa, sendo tal autoridade reservada ao Ganden Tri. Ele era a autoridade política máxima do Tibete e hoje comanda a parte da comunidade tibetana que se exilou em Dharamshala, Índia.
O Tibete era uma espécie de teocracia feudal até metade do Séc. XX, antes de ser anexado pela China. Então, sim, o Dalai Lama é uma autoridade religiosa também, claro, mas não uma autoridade suprema ou algo como um Papa, pois o budismo tibetano não é uma igreja católica, com um clero unificado. Conforme já explicado, há diferentes escolas e diferenças de visões filosóficas e nas práticas etc.
Em português, muitos livros bons foram publicados nos anos 90 e início dos anos 2000, em que o Dalai Lala comentava textos clássicos do budismo como o Sutra do Coração, o lamrim de Atisha, textos do III Dalai Lama, textos sobre meditação, de Kamalashila, etc. A figura popular do Dalai Lama fez com que, indiretamente, textos clássicos do budismo mahayana chegassem ao mercado de língua portuguesa, tão carente de traduções. Mas também há livros de auto-ajuda em que a marca "Dalai Lama" se sobrepõe ao budismo. Num país em que o budismo sempre teve uma presença muito pequena, a figura do Dalai Lama ajudou a popularizar os ensinamentos budistas e o interesse por meditação no público brasileiro, muito do budismo tibetano que aqui chegou é de vertentes ligadas a ele e criticá-lo, ainda que minimamente, sempre foi visto como um ato de heresia nos meios budistas brasileiros, resultando em censura e banimento de grupos virtuais.
Devido à história complicada da questão China-Tibete, muitas pessoas trazem teorias da conspiração infundadas e coisas do tipo quando surge algum escândalo ou notícia ruim sobre ele ou líderes budistas famosos no Ocidente.
O budismo tibetano está cheio de ensinamentos belos e profundos, há toda uma herança filosófico-religiosa trazida da Índia e refinada por grandes lamas budistas como Je Tsongkhapa, Atisha, Serlingpa, Sakya Pandita, Gedun Drub, Lobsang Chökyi Gyaltsel, Chekawa, Thogsmed Zangpo. Sonam Tsemmo, Buston Rinchen, Dölpopa Sherab Gyaltsen, Jetsun Taranatha e muitos outros; menciono aqui só alguns expoentes das linhagens das escolas Gelugpa, Sakya, Jonang-Zhalu, pois a lista seria imensa. E se uma pessoa interessada em budismo buscar textos desses personagens, estudá-los, verá que são como joias preciosas. Abaixo, uma imagem de Je Tsongkhapa, fundador da escola Gelugpa e um grande filósofo budista e reformador do Dharma no Tibete:
Mas, infelizmente, o budismo tibetano também conta com abusadores famosos que usam argumentos furados como "louca sabedoria" para ter escrava sexual e chamar de "consorte tantrica", como Sogyal Rinpoche, monges que se comportavam como golpistas e eram violentos com seus discípulos, os quais eram convencidos de que sofrer abusos nas mãos de um lama seria uma benção para purificar o karma (sic), como Chongyan Trungpa.
Há lamas que instigam o fanatismo e a idolatria, o culto à personalidade e adoram quando ocidentais os chamam de "Budas vivos" enquanto falam groselha para o público e garantem a sua doação. E quando algum escândalo vem à tona, usam o relativismo cultural como desculpa. O budismo tem histórico de escolas e gurus que se odeiam, que se pudessem destruiriam seus inimigos com um toque de mágica, corrupção, lavagem de dinheiro etc. As mulheres até hoje têm menos visibilidade e um status inferior, embora aos poucos e muito lentamente tenha havido mudanças, mas mudanças muito lentas e tímidas para os padrões do séc. XXI.
Como TODA religião instucionalizada, o budismo tibetano, as suas escolas estão permeadas por problemas sociais, relações de poder, politicagem etc. Achar que o budismo é uma exceção ou que tibetanos são um povo mais ingênuo e inocente que os outros é cair em mitos orientalistas antiquados e é uma forma infantilizada de buscar o budismo que só levará o buscador à decepção ou a um fanatismo nada saudável.
O ato do Dalai Lama é lamentável, e dificilmente haverá uma investigação adequada. Será que ele está dando sinais de senilidade dada a idade avançada ou seria o ego inflado de alguém que está acostumado a ser tratado como rei, a "reencarnação de Buddha" (como até hoje muita gente desinformada o chama no Ocidente)? Um ego inflado que "brinca" com os outros a despeito do trauma que isso possa causar nesses outros, principalmente quando a suposta brincadeira de mau gosto é feita com uma criança? Quão saudável é tratar pessoas como deuses encarnados? Será que é uma atitude budista adequada cultuar os outros? É lamentável a forma como as desculpas foram dadas por meio de seus representantes, com um textinho curto, em terceira pessoa, num tom corporativo ao estilo "desculpe o transtorno", que poderia ter sido escrito pelo chat GPT. Por que ele não pode falar diretamente ao público e esclarecer isso?
Também é lamentável que muitos budistas tentem defender ou eximir o Dalai Lama com teorias da conspiração, diagnóstico hipotético de Alzheimer (sim, ele pode estar senil, mas isso é apenas uma conjectura), ou com relativismo cultural (talvez a pior das desculpas).
Ao mesmo tempo, simpatizantes e pessoas que desconhecem os meandros, os conflitos e problemas do budismo tibetano e suas politicagens e história complexa, estão decepcionados, pois talvez projetassem no Dalai Lama uma última esperança de pureza espiritual e estabilidade mental num mundo cada vez mais carente de bons exemplos, principalmente no campo da espiritualidade. É sempre doloroso quando nos decepcionamos com alguém porque fomos induzidos pela mídia a projetar expectativas altas demais.
Não cair em idolatria e não cultuar personalidades são atitudes essenciais no caminho. Também é fundamental que haja discernimento, estudo, reflexão, meditação. Até porque o budismo não propõe a salvação por meio de terceiros. A iluminação vem pelo esforço próprio, a partir do que se aprendeu. O guru aponta, mas o caminho é nosso e temos de escolher bem qual caminho seguir e com quem queremos caminhar; não se deve aceitar algo sem reflexão e sem discernimento só porque vem de alguém numa posição de autoridade.
Que tenhamos discernimento e não tenhamos medo de apontar condutas inadequadas e danosas para os outros. Que também seja uma oportunidade para a sangha budista refletir sobre a forma com que lida com escândalos desse tipo. Que possamos refletir sobre a nossa própria conduta de corpo, fala e mente.
Que o foco seja no ensinamento, no Dharma. E se houver contradições nos ensinamentos dados, nos grupos, se percebermos mentalidade de seita, que tenhamos a coragem de reconhecer isso e mudar de rota, com confiança de que o caminho, embora longo e árduo, vale a pena! Que haja discernimento, compaixão e coragem!
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