O que é chamado de "gnosticismo" é uma tradição vinculada a Jesus e seu círculo interno de discípulos, os ophitas, com influências de ensinamentos dos essênios e da tradição dos profetas em sua vertente mais esotérica, incluindo a kabbhalah dos nazarenos, a gnosis judaica e pré-cristã dos sethianos. Essa tradição refinada pelos ensinamentos de Jesus, o Vivo, flui por diferentes escolas posteriores, como os valentianos, marcionitas, mandeanos, maniqueus. Dentre expoentes daqueles que atuaram junto a Jesus, destacam-se João Lázaro, João Batista, Maria Madalena, Tomé, o Gêmeo. A literatura apócrifa, incluindo os textos descobertas em Nag Hammadi e os Manuscritos do Mar Morto, requer um estudo cuidadoso, com discernimento nessa busca pelo que seria o outro "cristianismo", caso a Igreja medieval não tivesse perseguido as antigas escolas gnósticas. Personagens como Filon Judeu, Bardenases, Mani, Paulo e outros também se destacam como verdadeiros representantes dessa linhagem gnóstica.
quinta-feira, 1 de junho de 2023
Gnosticismo: Separando o joio do trigo
segunda-feira, 10 de abril de 2023
O Dalai Lama e Os Escândalos no Budismo Tibetano
Sobre o novo escândalo envolvendo o atual e XIV Dalai Lama, a sua suposta tentativa de dar um beijo de língua numa criança, concordo com o Amigo Monge (alguém que convive com tibetanos há décadas, fala a língua e tem muita familiaridade com a cultura): Não há justificativa cultural.
O escândalo começou a circular na mídia indiana e no Twitter antes de ter atenção da mídia ocidental, que é sempre muito reticente em criticar o D.L., erroneamente pintado por ela como um Papa do budismo. O budismo tibetano tem muitas escolas e sub-escolas, linhagens e o Dalai Lama não dita, nem necessariamente segue, nem determina ou não deveria determinar o que as diferentes escolas podem ou não praticar e como devem ou não organizar as suas respectivas linhagens. Em tese, ele nem seria a autoridade máxima de sua escola, a Escola Gelugpa, sendo tal autoridade reservada ao Ganden Tri. Ele era a autoridade política máxima do Tibete e hoje comanda a parte da comunidade tibetana que se exilou em Dharamshala, Índia.
O Tibete era uma espécie de teocracia feudal até metade do Séc. XX, antes de ser anexado pela China. Então, sim, o Dalai Lama é uma autoridade religiosa também, claro, mas não uma autoridade suprema ou algo como um Papa, pois o budismo tibetano não é uma igreja católica, com um clero unificado. Conforme já explicado, há diferentes escolas e diferenças de visões filosóficas e nas práticas etc.
Em português, muitos livros bons foram publicados nos anos 90 e início dos anos 2000, em que o Dalai Lala comentava textos clássicos do budismo como o Sutra do Coração, o lamrim de Atisha, textos do III Dalai Lama, textos sobre meditação, de Kamalashila, etc. A figura popular do Dalai Lama fez com que, indiretamente, textos clássicos do budismo mahayana chegassem ao mercado de língua portuguesa, tão carente de traduções. Mas também há livros de auto-ajuda em que a marca "Dalai Lama" se sobrepõe ao budismo. Num país em que o budismo sempre teve uma presença muito pequena, a figura do Dalai Lama ajudou a popularizar os ensinamentos budistas e o interesse por meditação no público brasileiro, muito do budismo tibetano que aqui chegou é de vertentes ligadas a ele e criticá-lo, ainda que minimamente, sempre foi visto como um ato de heresia nos meios budistas brasileiros, resultando em censura e banimento de grupos virtuais.
Devido à história complicada da questão China-Tibete, muitas pessoas trazem teorias da conspiração infundadas e coisas do tipo quando surge algum escândalo ou notícia ruim sobre ele ou líderes budistas famosos no Ocidente.
O budismo tibetano está cheio de ensinamentos belos e profundos, há toda uma herança filosófico-religiosa trazida da Índia e refinada por grandes lamas budistas como Je Tsongkhapa, Atisha, Serlingpa, Sakya Pandita, Gedun Drub, Lobsang Chökyi Gyaltsel, Chekawa, Thogsmed Zangpo. Sonam Tsemmo, Buston Rinchen, Dölpopa Sherab Gyaltsen, Jetsun Taranatha e muitos outros; menciono aqui só alguns expoentes das linhagens das escolas Gelugpa, Sakya, Jonang-Zhalu, pois a lista seria imensa. E se uma pessoa interessada em budismo buscar textos desses personagens, estudá-los, verá que são como joias preciosas. Abaixo, uma imagem de Je Tsongkhapa, fundador da escola Gelugpa e um grande filósofo budista e reformador do Dharma no Tibete:
Mas, infelizmente, o budismo tibetano também conta com abusadores famosos que usam argumentos furados como "louca sabedoria" para ter escrava sexual e chamar de "consorte tantrica", como Sogyal Rinpoche, monges que se comportavam como golpistas e eram violentos com seus discípulos, os quais eram convencidos de que sofrer abusos nas mãos de um lama seria uma benção para purificar o karma (sic), como Chongyan Trungpa.
Há lamas que instigam o fanatismo e a idolatria, o culto à personalidade e adoram quando ocidentais os chamam de "Budas vivos" enquanto falam groselha para o público e garantem a sua doação. E quando algum escândalo vem à tona, usam o relativismo cultural como desculpa. O budismo tem histórico de escolas e gurus que se odeiam, que se pudessem destruiriam seus inimigos com um toque de mágica, corrupção, lavagem de dinheiro etc. As mulheres até hoje têm menos visibilidade e um status inferior, embora aos poucos e muito lentamente tenha havido mudanças, mas mudanças muito lentas e tímidas para os padrões do séc. XXI.
Como TODA religião instucionalizada, o budismo tibetano, as suas escolas estão permeadas por problemas sociais, relações de poder, politicagem etc. Achar que o budismo é uma exceção ou que tibetanos são um povo mais ingênuo e inocente que os outros é cair em mitos orientalistas antiquados e é uma forma infantilizada de buscar o budismo que só levará o buscador à decepção ou a um fanatismo nada saudável.
O ato do Dalai Lama é lamentável, e dificilmente haverá uma investigação adequada. Será que ele está dando sinais de senilidade dada a idade avançada ou seria o ego inflado de alguém que está acostumado a ser tratado como rei, a "reencarnação de Buddha" (como até hoje muita gente desinformada o chama no Ocidente)? Um ego inflado que "brinca" com os outros a despeito do trauma que isso possa causar nesses outros, principalmente quando a suposta brincadeira de mau gosto é feita com uma criança? Quão saudável é tratar pessoas como deuses encarnados? Será que é uma atitude budista adequada cultuar os outros? É lamentável a forma como as desculpas foram dadas por meio de seus representantes, com um textinho curto, em terceira pessoa, num tom corporativo ao estilo "desculpe o transtorno", que poderia ter sido escrito pelo chat GPT. Por que ele não pode falar diretamente ao público e esclarecer isso?
Também é lamentável que muitos budistas tentem defender ou eximir o Dalai Lama com teorias da conspiração, diagnóstico hipotético de Alzheimer (sim, ele pode estar senil, mas isso é apenas uma conjectura), ou com relativismo cultural (talvez a pior das desculpas).
Ao mesmo tempo, simpatizantes e pessoas que desconhecem os meandros, os conflitos e problemas do budismo tibetano e suas politicagens e história complexa, estão decepcionados, pois talvez projetassem no Dalai Lama uma última esperança de pureza espiritual e estabilidade mental num mundo cada vez mais carente de bons exemplos, principalmente no campo da espiritualidade. É sempre doloroso quando nos decepcionamos com alguém porque fomos induzidos pela mídia a projetar expectativas altas demais.
Não cair em idolatria e não cultuar personalidades são atitudes essenciais no caminho. Também é fundamental que haja discernimento, estudo, reflexão, meditação. Até porque o budismo não propõe a salvação por meio de terceiros. A iluminação vem pelo esforço próprio, a partir do que se aprendeu. O guru aponta, mas o caminho é nosso e temos de escolher bem qual caminho seguir e com quem queremos caminhar; não se deve aceitar algo sem reflexão e sem discernimento só porque vem de alguém numa posição de autoridade.
Que tenhamos discernimento e não tenhamos medo de apontar condutas inadequadas e danosas para os outros. Que também seja uma oportunidade para a sangha budista refletir sobre a forma com que lida com escândalos desse tipo. Que possamos refletir sobre a nossa própria conduta de corpo, fala e mente.
Que o foco seja no ensinamento, no Dharma. E se houver contradições nos ensinamentos dados, nos grupos, se percebermos mentalidade de seita, que tenhamos a coragem de reconhecer isso e mudar de rota, com confiança de que o caminho, embora longo e árduo, vale a pena! Que haja discernimento, compaixão e coragem!
segunda-feira, 26 de setembro de 2022
Taranatha sobre a virtude última
No Ornamento do Vazio de Outro da Grande Madhyamaka (gZhan stong dbu ma'i rgyan), Taranatha diz:
"Nos ensinamentos Abhidharma, temos o seguinte:
Qual é a virtude última? Ensina-se que é a própria Realidade Última. Portanto, a sabedoria primordial (jnana) de Alaya, é ensinada, pois esta é a própria Realidade Última, a pura jnana. Por ser chamada de virtuosa, não se trata da consciência dual (alaya-vijnana). Mas é Alaya (a Base Universal) ou o Sugatagarbha (a Semente da Bem-Aventurança), a Natureza-Buddha. Visto que a Realidade Última é ensinada como a causa do Despertar (isto é, a Iluminação) e como a própria Realidade da única realidade, não se trata de um fenômeno não existente. Tampouco se trata da realidade aparente (ou relativa)."
*Jetsun Taranatha viveu entre a segunda metade do século XVI e primeira metade do século XVII no Tibete e na Mongólia. Foi o último abade da Escola Jonang original, ligado à linhagem Jonang-Zhalu.
* Tradução de Bruno Carlucci.
Vajradhara - uma emanação de Adi-Buddha, o Buddha Primordial |
segunda-feira, 5 de setembro de 2022
Nagarjuna sobre Bodhicitta (a mente altruísta)
terça-feira, 5 de abril de 2022
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022
O Vazio é cheio
O Vazio é Cheio
Bruno Carlucci
A perspectiva do vazio (śūnyatā) não é um vácuo, mas é interdependência.,
O vazio (śūnya) não é uma vacuidade, mas uma ausência de separatividade.
O vazio não é negação da realidade relativa, daquilo que é superficialmente ou aparentemente separado, mas a compreensão de que essa separatividade não é essencial, não é a natureza-própria (svabhāva) das coisas.
O vazio é cheio.
"A interdependência ou o surgimento-dependente significa falta de separatividade. O vazio significa falta de separatividade. Vazio não significa que nada exista." - Candrakirti (Comentário ao Caminho do Meio/Madhyamakavatara).
Assim ensina a Madhyamaka.
Chandrakirti (séc. VII, Índia)Assim acrescenta a Grande Madhyamaka, Yogācāra-Madhyamaka:
O Vazio último é vazio de outro, porque todos os fenômenos são vazios de si.
Todos os fenômenos são interdependentes porque a Natureza Última é vazia de outro.
É o elemento quitessencial, o Dharmadhātu.
É O Espaço primordial em que surgem os fenômenos.
É O Círculo do Tempo Incondicionado.
Vazio Incondicionado. Plenitude Absoluta.
O Grande Vazio (Shentong) é Cheio porque não há outro senão Ele.
É a Plenitude Suprema.
É Natureza-Buddha.
É a Base Universal prístina (Ālaya).
É a Natureza Última, o Númeno (Dharmatā).
É Bodhicitta.
É ĀdiBuddha.
"Portanto, a Realidade Última de todos os sūtras e tantras profundos, que cuidadosamente apresentam Tathatā e daí por diante, é o Vazio de Outro, nunca o vazio de natureza própria." (Dölpopa Sherab Gyaltsen, O Quarto Concílio).
quarta-feira, 1 de dezembro de 2021
Uma síntese da Senda Graduada, o Lamrim
Uma Síntese da Senda Graduada, o Lamrim, no budismo Mahāyāna:
(A partir do último capítulo do Lamrim ChenMo, de Je Tsongkhapa*)
Bruno Carlucci
Khedrub Palzangpo, Je Tsongkhapa e Gyaltsab Rinchen
- A raiz do caminho deriva da confiança num guru idôneo.
- Aproveite o tempo livre para praticar continuamente.
- Medite sobre os tópicos conectados com o lazer e a oportunidade.
- Reflita sobre as vidas futuras, tirando o foco da gratificação imediata.
- Medite sobre a impermanência do seu corpo atual e sobre o pós-vida.
- Refletindo sobre o risco de cair em renascimentos miseráveis, gere convicção sobre as três jóias (Buddha, Dharma e Sangha).
- Desenvolva constância em seu treinamento.
- Desenvolva convicção acerca do karma e seus efeitos.
- Esforce-se em renunciar às dez ações não virtuosas e adote as dez ações virtuosas.