sexta-feira, 6 de março de 2020

Blavatsky sobre as cartas dos Mahatmas

Declaração [sobre as Cartas dos Mahatmas]*

Helena Petrovna Blavatsky 



[Esta declaração é precedida pelas seguintes palavras da Sra. Gebhard: “Extratos de uma carta de H.P.Blavatsky, com a data de 24/1/1886 em Wurzburg, copiada pela Sra. Gebhard. O conteúdo foi confirmado verbalmente por H.P.B. ao Sr. e Sra. Gebhard em Elberfeld, em junho de 1886.]

Nesta manhã, antes da chegada de sua carta às seis horas, o Mestre me deu permissão e disse para que explicasse a você e a todos os teosofistas sinceros e verdadeiramente devotados (“o que se colhe, se planta”) sobre as perguntas, as preces pessoais e privadas, as respostas formuladas na mente daqueles a quem tais assuntos podem ainda interessar, aqueles cujas mentes ainda não estão completamente indiferentes a tais questões terrenas e mundanas, trazendo respostas de chelas e neófitos, frequentemente algum conteúdo refletido da minha própria mente. Pois os Mestres não disponibilizariam seus pensamentos, por um momento sequer, a questões individuais e privadas a apenas uma ou mesmo a dez pessoas, relacionadas ao seu bem-estar pessoal, suas lamentações e alegrias neste mundo de Maya, a nada senão questões de importância realmente universal. 

Foram todos vocês, teosofistas, que rebaixaram em suas mentes os ideais de nossos Mestres; vocês, ainda que inconscientemente e com a melhor das intenções e total sinceridade, OS profanaram, ao acreditar por um momento que Eles se ocupariam com vossas questões profissionais, o nascimento de filhos, o casamento de filhas, a construção de casas etc etc. 

No entanto, aqueles de vocês que receberam tais comunicações, sendo quase todos sinceros (os insinceros receberam o devido tratamento conforme outras leis específicas), e sabendo da existência de Seres que, conforme vocês julgaram, poderiam facilmente ajudá-los, tinham o direito de buscar o Seu auxílio, de se endereçar a Eles assim como um monoteísta se endereça ao seu Deus pessoal e profana o Grande Desconhecido um milhão de vezes acima dos Mestres, pedindo a Ele (ou Aquilo) ajuda com as colheitas, a destruição de um inimigo e o envio de um filho ou uma filha; e tendo tal direito no sentido abstrato, Eles [os Mestres] não poderiam desprezá-los e recusar-lhes uma resposta, senão Deles próprios, ordenando, então, a um(a) chela que satisfizesse as suas dúvidas da melhor forma possível, de acordo com as capacidades do próprios chelas.

Quantas vezes eu (uma não Mahatma) fiquei chocada e sobressaltada, queimando de vergonha quando me mostraram notas escritas nas Suas (duas) caligrafias (caligrafia adotada para a S.T. e usada por chelas, mas jamais sem a permissão especial dos Mahatmas ou ordem para tal), exibindo erros de ciência, gramática e pensamentos, expressa numa linguagem que pervertia completamente o significado originalmente intencionado e, às vezes, expressões que em sânscrito, tibetano ou qualquer outra língua asiática teriam um sentido bem diferente, como um que fornecerei de exemplo.

Em resposta à carta do Sr. Sinnett se referindo a alguma contradição aparente em ÍSIS, o chela que precipitou a resposta do Mahatma K.H. colocou: “tive de exercitar toda a minha esperteza (em inglês, ingenuity) para conciliar as duas coisas”. O termo em inglês ingenuity, usado para expressar candura, imparcialidade é agora uma palavra obsoleta com esse sentido, não mais usada dessa forma, mas que até eu encontrei no dicionário Webster, enquanto Massey, Hume e, acredito que mesmo o Sr. Sinnett, interpretaram mal a palavra, tomando-a pelo sentido de “astúcia”, “esperteza”, “perspicácia”, para formar uma nova combinação como se não houvesse contradição. Portanto: “O Mahatma confessa, sem reservas, usar de esperteza (ingenuity), usar de astúcia para conciliar as coisas, como um advogado ardiloso e trapaceiro” etc etc. 

Agora se eu tivesse sido a responsável por precipitar ou escrever a carta, teria usado a palavra “ingenuousness”, “coração aberto, franqueza, honestidade, livre de reservas ou dissimulação”, como o dicionário Webster a define e o opróbrio lançado sobre o caráter do Mahatma K.H. teria sido evitado. Eu não teria escrito ácido carbólico ao invés de ácido carbônico etc. Muito raramente o Mahatma K.H. ditava palavra por palavra; e quando assim o fazia, lá restavam as poucas passagens sublimes em suas cartas para o Sr. Sinnett. O restante, Ele diria, “escreva tal e tal” e o chela escrevia, geralmente sem saber uma palavra de inglês, assim como eu tenho a incumbência de escrever em hebraico, grego, latim etc. 

Portanto, a única coisa pela qual posso ser repreendida – uma repreensão que estou sempre pronta a assumir embora não a tenha merecido, uma vez que fui apenas o instrumento obediente e cego de leis e regulamentos ocultos, é de ter (1) usado o nome do Mestre quando pensei que a minha autoridade não valeria de nada, quando acreditei sinceramente estar agindo de acordo com as intenções do Mestre** e pelo bem da causa; e (2) de ter guardado aquilo que as leis e regulamentos de meus compromissos não me permitiam revelar até então; (3) talvez (novamente por esta razão) de ter insistido que tal e tal nota era do Mestre, escrita por seu próprio punho, a todo o momento pensando jesuiticamente, eu confesso: “Bem, já que está escrito sob Suas ordens em Sua caligrafia, afinal de contas, por que vou me explicar àqueles que não podem entender a verdade e talvez acabe por piorar as coisas.”

Duas ou três vezes, talvez mais, as cartas foram precipitadas em minha presença, por chelas que não sabiam falar inglês e que tiraram ideias e expressões da minha mente. Os fenômenos na realidade, em realidade solene, foram maiores nesses períodos do que antes! Entretanto, eles pareciam ter suspeitas e eu tinha de segurar a minha língua, vendo a suspeita crescer nas mentes daqueles a quem mais
amo e respeito, incapaz de me justificar ou de dizer uma palavra. Somente o Mestre sabia o quanto eu sofria. 

Pense apenas em mim doente na cama (um caso que ocorreu com Solovioff em Elberfeld); uma carta sua, uma carta antiga recebida em Londres e rasgada por mim, rematerializada como pude ver com meus próprios olhos, pois estava olhando para ela; cinco ou seis vezes na língua russa, na caligrafia do Mahatma K.H. em azul, as palavras tiradas da minha cabeça, a carta velha e amassada viajando devagar e sozinha pelo quarto (nem eu consegui ver a mão astral do chela que conduzia essa operação), então caindo entre os papéis de Solovioff, que escrevia em sua pequena escrivaninha, corrigindo os meus manuscritos. Olcott estava perto dele e acabara de lhe passar os papéis. Solovioff encontrara a carta, e vejo em russo o seu pensamento como um flash: “O velho impostor (referindo-se a Olcott) deve ter colocado isso aqui!”. Houve centenas de situações semelhantes. 

Bom, isso é suficiente. Disse a verdade, apenas e nada mais do que a verdade. Muitas são as coisas sobre as quais não tenho o direito de explicar, mesmo se tivesse de ser enforcada por isso.

Notas:

* Texto publicado em The Early Teachings of The Masters 1881-1883, editado por Jirajanadasa. Wheaton, Illinois: The Theosophical Press, 1923.

O texto em inglês também está disponível na íntegra no Blavatsky Archives

** sobre isso H.P.B. diz: "Por diversas vezes, percebi que estava errada e agora sou punida por isso com a crucificação diária e constante. Peguem as pedras, teosofistas, peguem-nas, irmãos e irmãs gentis e bondosos, e me apedrejem até a morte por tentar fazê-los felizes com uma palavra dos Mestres!"

Texto traduzido por Bruno Carlucci, como parte de uma coletânea de estudos das cartas dos Mahatmas, organizada pelo teosofista David Reigle. A coletânea completa, contendo os artigos de Reigle sobre o uso de terminologia budista nas cartas dos Mahatmas, pode ser acessada aqui.


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

O Rei Thevetat da Atlântida

O Rei Thevetat da Atlântida

David Reigle

Representação imaginária da Atlântida, por Sir Gerald Hargreaves


A impressionante história do Rei Thevetat da Atlântida é apresentada por H.P.Blavatsky em seu livro de 1877, Ísis sem Véu. Embora esse rei fosse a fonte de todo o “mal” que tornou o seu povo “perverso”, eles não eram perversos devido a uma intenção maligna. Eles, e o rei, eram simplesmente naturalmente aptos à vidência e à magia e não tinham as restrições ou controle que a influência de um treinamento sistemático lhes teria proporcionado. Aqui está a história (vol. 1, pp. 589-594):

“Diz a tradição, e os registros do Grande Livro explicam, que muito antes dos dias de Ad-am, e sua esposa questionadora, He-va, onde agora se encontram apenas lagos salgados e desertos estéreis e desolados, havia um vasto mar no interior desse território, que se estendia pela Ásia Central, ao norte das orgulhosas cadeias do Himalaia e o seu prolongamento ocidental. Uma ilha, cuja beleza sem paralelos conhecera nenhum rival no mundo, habitada pelos últimos remanescentes da raça que precedeu a nossa. Tal raça era capaz de viver com igual facilidade na água, no ar, ou no fogo, pois tinha um controle ilimitado sobre os elementos. Estes eram os “Filhos de Deus”; não aqueles que viram as filhas dos homens, mas os reais Elohim, embora tenham um nome diferente na Kaballah oriental. Foram eles que deram aos homens os segredos mais recônditos da Natureza e revelaram-lhes a “palavra” inefável, agora perdida. Essa palavra, que não é uma palavra, viajou uma vez por todo o globo, e ainda permanece como um eco longínquo e moribundo nos corações de alguns homens privilegiados. Os hierofantes de todos os Colégios Sacerdotais tinham ciência da existência dessa ilha, mas a “palavra” foi conhecida apenas ao Yava Aleim, ou o senhor e diretor de todos os colégios, e foi passada ao seu sucessor somente no momento de sua morte. Havia muitos desses colégios, e os antigos autores clássicos falam deles."

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“Não havia comunicação com a bela ilha pelo mar, mas passagens subterrâneas, conhecidas apenas aos diretores, ligavam a ilha a todas as direções. A Tradição aponta que muitas das ruínas majestosas da Índia, Ellora, Elephanta, e as cavernas de Ajanta (Cadeias de Chandor) uma vez pertenceram a esses colégios e se conectavam com eles por meio de passagens subterrâneas. Quem pode afirmar que os antigos Atlantes – o que também é mencionado no Livro Secreto, mas, novamente, sob outro nome, pronunciado na língua sagrada—não existiam ainda nesses dias? O grande continente perdido pode ter, possivelmente, se situado ao sul da Ásia, se estendendo da Índia à Tasmânia. Se a hipótese agora tão questionada, e positivamente negada por alguns estudiosos que a veem como uma piada de Platão, for algum dia atestada, então, talvez os cientistas acreditem que o continente habitado por deuses foi mais do que uma simples fábula. Conseguirão, então, perceber que Platão resguardou indícios e que o fato de atribuir a narrativa a Sólon e aos sacerdotes egípcios foi uma maneira prudente de apresentar o fato ao mundo, inteligentemente combinando verdade e ficção, de modo a se desconectar dessa história uma vez que as obrigações impostas pela iniciação o proibiam de divulgar." 

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 “A fim de continuar a tradição, temos de acrescentar que a classe de hierofantes foi dividida entre duas categorias distintas: aqueles que foram instruídos pelos “Filhos de Deus” sobre a ilha, e que foram iniciados na doutrina divina da revelação pura, e aqueles que habitaram a Atlântida perdida — se assim devemos nomeá-la — e que, pertencendo a uma outra raça, nasceram com uma visão que abarcava todas as coisas ocultas, que não dependia nem da distância, nem de obstáculos materiais. Em suma, eles constituíam a quarta raça de homens mencionadas no Popol-Vuh, cuja vista era ilimitada e que conhecia todas as coisas de uma vez. Eles eram, talvez, o que hoje chamaríamos de “médiuns de nascimento”, que não se esforçavam, nem sofriam para obter o seu conhecimento, nem o obtiveram sob o preço de qualquer sacrifício. Portanto, embora os primeiros trilhassem a senda de seus instrutores divinos, alcançando o conhecimento por diferentes graus, aprendendo, ao mesmo tempo, a discernir o mal do bem, os que já eram nascidos adeptos da Atlântida cegamente seguiam as insinuações do grande “Dragão” invisível, o Rei Thevetat (A Serpente do Gênesis?). Thevetat não aprendera, nem adquirira conhecimento, mas, utilizando-nos de uma expressão do Dr. Wilder em relação à Serpente tentadora, ele era “um tipo de Sócrates que sabia sem ter sido iniciado.” Portanto, sob as insinuações maléficas de seu demônio, Thevetat, a raça atlante se tornou uma nação de magos pervertidos. Como consequência disso, a guerra foi declarada, uma história que seria muito longa para ser narrada [1]; a sua substância pode ser encontrada nas alegorias desfiguradas da raça de Caim, dos gigantes, e de Noé e sua família virtuosa. O conflito chegou ao fim com o afundamento da Atlântida, que encontra a sua imitação nas histórias do dilúvio mosaico e babilônico: Os gigantes e magos “. . . e toda carne morreu . . . e todos os homens.” Tudo exceto Xisuthrus e Noé, que são substancialmente idênticos ao grande Pai dos Thlinkithians no Popol-Vuh, ou o livro sagrado do povo da Guatemala, que também conta de sua fuga em um grande navio, assim como o Noé hindu—Vaivasvata." 

“Se dermos algum crédito à tradição, temos de considerar o decorrer da história em que a partir do casamento da progênie dos hierofantes da ilha e dos descendentes do Noé atlante, surgiu uma raça misturada de virtuosos e perversos. De um lado o mundo tinha os seus Enoques, Moisés, Gautamas-Buddhas, seus numerosos “Salvadores” e grandes hierofantes; de outro lado, os seus “magos naturais” que, por falta do poder restritivo da iluminação espiritual e devido à fraqueza de sua organização física e mental, perverteram sem intenção os seus dons para propósitos maléficos. Moisés não demonstrava repreensão em relação aos adeptos da profecia e outros poderes que foram instruídos nos colégios da sabedoria esotérica mencionados na Bíblia. As suas denúncias se voltavam contra aqueles que intencionalmente ou não degradavam os poderes herdados de seus ancestrais atlantes, à serviço de espíritos maléficos, para ferir a humanidade . . . .”

Essa é a história do Rei Thevetat da Atlântida dada por H. P. Blavatsky em seu livro de 1877, Ísis sem Véu. Mais adiante, no mesmo livro, vemos de onde o nome Thevetat surgiu (vol. 2, p. 576, edição em língua inglesa de 1877). Blavatsky se refere a um “antigo livro, escrito pelo Sieur de La Loubère, Embaixador francês para o Rei do Sião,” de onde ela citara “suas palavras sobre o Salvador Siamês—Sommona-Codom”:

“Quão maravilhoso fingem ter sido o nascimento de seu Salvador, eles não param de atribuir a ele um pai e uma mãe. A sua mãe, cujo nome é encontrado em alguns de seus livros em Balie (páli?), foi chamada, como eles dizem, Maha MARIA, o que parece significar a grande Maria, pois Maha significa grande. Seja como for, isso não para de chamar a atenção dos missionários e possivelmente abriu o caminho para que os siameses acreditem que Jesus, sendo o filho de Maria, foi irmão de Sommona-Codom, e que, tendo sido crucificado, ele foi o irmão perverso atribuído ao Sommona-Codom, sob o nome de Thevetat, e a quem afirmam ter sido punido no Inferno, numa pena em que é utilizada algo como uma cruz. . . .”

O salvador siamês a quem La Loubère se refere é, obviamente, o Buddha. A sua transcrição fonética de “Sommona-Codom” da língua “Balie” ou Pali representa o que na transliteração moderna corresponde a “samaṇa Gotama.” Podemos agora ver que “Thevetat,” como escrito na tradução em inglês de 1693 [2], ou “Tevetat,” como escrito no original em francês de 1691 [3], é “Devadatta,” o primo perverso de Gotama Buddha.

Devadatta é o “vilão” arquetípico nas escrituras budistas. Ele teria sido um monge budista de grande estatura e grande austeridade, tendo obtido poderes psíquicos condizentes com o seu estágio avançado. De acordo com todos os relatos, ele tentou causar um cisma na ordem budista. Essa é uma ofensa grave para um monge budista. Em alguns relatos, ele teria tentado até mesmo matar o Buddha. O Seu nome evoca a imagem do maior inimigo do Buddha e da ordem [sangha] budista. Um número significativo de escrituras budistas contém narrativas jātaka envolvendo esse personagem, como histórias de seus nascimentos anteriores, mostrando que estava em conflito com o Buddha em vidas anteriores também.

A história sobre o Rei Thevetat da Atlântida dada em 1877 em Ísis sem Véu foi posteriormente referida no artigo, Leaflets from Esoteric History (Folhetos da História Esotérica), não assinado, mas, que pode ter sido escrito por ou sob os auspícios de um Mahatma, um dos instrutores por trás do movimento Teosófico. Nesse texto, assim como em A Doutrina Secreta em que Blavatsky repete essa história com explanações (vol. 2, pp. 220-222, edição em língua inglesa), também encontramos a grafia Thevetata. Essa grafia é usada nesse artigo no plural para se referir aos deuses do panteão etrusco como reminiscentes dos deuses atlantes que foram seguidores do Rei Thevetat:

“Na página 5 [edição em língua inglesa] de Ísis, Vol. I, os Thevetatas—os deuses maléficos e dissimulados que sobreviveram no Panteão Etrusco—são mencionados, assim como os “filhos de deus” ou Brahma Pitris. Os Involute, os deuses escondidos ou envoltos, os Consentes, Complices, e Novensiles, são todos remanescentes disfarçados dos atlantes; enquanto que as artes Etruscas de predizer sua Disciplina reveladas por Tages vêm de forma direta e sem disfarce do rei atlante, Thevetat, o Dragão “invisível”, cujo nome sobrevive até os dias de hoje entre alguns siameses e birmaneses, assim como nas alegorias budistas jātaka [narrativas sobre as vidas anteriores de Sidharta,  o Buddha], como o poder opositor sob o nome de Devadat. Tages era o filho de Thevetat, antes de ter se tornado o neto do Júpiter-Tinia etrusco.”[4]

Assim temos a conexão direta entre a história do Rei Thevetat da Atlântida e as narrativas alegóricas budistas sobre Devadat, isto é, Devadatta. Como vimos, o nome Tevetat/Thevetat é apenas uma transcrição fonética de 1691/1693 do nome Devadatta na língua páli. É exatamente o mesmo em sânscrito, Devadatta, e também no chamado sânscrito híbrido budista (por exemplo, no Mahāvastu). Devadatta significa “dado pelos deuses.” Não há variantes conhecidas desse nome em textos budistas. O rei atlante Thevetat, isto é, Devadatta, teria sido o protótipo do personagem posterior com este nome, e às vezes, com outros nomes. A ligação com os deuses do panteão etrusco serve para nos mostrar que a história foi preservada em outros locais, mesmo que os nomes tenham sido alterados. É a história antiga do conflito entre o bem e o mal, mas com uma importância diferente. Nessa história o mal é o resultado do uso de faculdades avançadas que ocorrem naturalmente sem o devido e necessário treinamento para o seu uso correto. Este mal não é o mal explícito do egoísmo, da ganância, da agressão etc, mas é o mal mais sutil de seguir o caminho espiritual errado.

De acordo com essa história, a partir do período do rei Thevetat/Devadatta em diante há no mundo duas hierarquias opostas de ensinamentos. Ao apresentar a história sobre o rei Thevetat/Devadatta da Atlântida, Blavatsky tornou publicamente conhecida a existência dessas duas classes distintas de hierofantes e a sua existência continua até o presente por meio de seus descendentes espirituais. Aqui podemos encontrar o motivo para algo que tem deixado estudantes de teosofia perplexos há muito tempo: a oposição, mostrada nas Cartas dos Mahatmas, aos chamados “Gorros Vermelhos”, isto é as ordens do budismo tibetano que não a dos Gelugpas ou “Gorros Amarelos”.[5] Isso pode parecer como algo diametralmente oposto à fraternidade, o primeiro objetivo da Sociedade Teosófica: “Formar um núcleo da fraternidade universal da humanidade, sem distinção de raça, credo, sexo, casta ou cor.” Ademais, em décadas recentes muitos no Ocidente entraram em contato com lamas dos “Gorros Vermelhos”, os quais podem ser boas pessoas e com frequência levam uma vida religiosa. Eles não ensinam algo que à princípio consideraríamos magia negra, mas falam de bondade e compaixão, assim como o fazem os lamas dos “Gorros Amarelos”. Alguns de seus outros ensinamentos, entretanto, foram aparentemente considerados pelos Mahatmas teosóficos como heranças do Rei Thevetat/Devadatta da Atlântida. 

Visto que a Atlântida ainda está no reino do mito, ao invés da história, todos os meios de traçar uma linhagem de ensinamentos espirituais das duas classes opostas de hierofantes faladas na história sobre o rei Thevetat/Devadatta são velados para nós. Como os Mahatmas teosóficos somente demonstraram a sua oposição aos “Gorros Vermelhos” nas Cartas dos Mahatmas, mas não a explicaram, cabe a nós juntar as evidências e fazer nossas próprias deduções. Há algo na história conhecida que possa ligar os ensinamentos atribuídos ao Rei Thevetat/Devadatta aos ensinamentos dos “Gorros Vermelhos”? Sim, há três eventos importantes na disseminação do budismo para a China e o Tibete que mostram tal ligação. Sabemos que os Mahatmas teosóficos se opõem ao quietismo, que foi descrito numa carta do Mahatma como “a paralisia total da alma”.[6]

Em relação à história sobre o rei Thevetat/Devadatta, o quietismo significa usar as faculdades intuitivas naturais para alcançar o conhecimento espiritual, “ao invés de se tornar um neófito e gradualmente obter o seu conhecimento esotérico por meio da iniciação regular.”[7] O contraste entre essas duas abordagens para a prática espiritual se mostrou em momentos importantes na história conhecida da disseminação do budismo. O budismo nasceu na Índia e foi levado para a China nos primeiros séculos do primeiro milênio de nossa era. Lá o budismo foi adaptado ao temperamento local da época, mais notavelmente como Chan, ou Zen como ficou conhecido no Japão e como é mais conhecido no Ocidente. O momento decisivo na história do budismo Chan/Zen ocorreu no século VII de nossa era, quando, como registrado no influente Sūtra da Plataforma [Liùzǔ Tánjīng], Huineng com sucesso teria convencido o Sexto Patriarca real. Embora estudiosos modernos tenham desacreditado muito desse relato, isso não muda o fato de que o Chan/Zen se desenvolveu em torno das linhas indicadas desde aquele tempo até o presente. De acordo com esse relato, o principal discípulo do Quinto Patriarca, Shenxiu escreveu um verso para demonstrar a sua competência para se tornar o Sexto Patriarca: “A mente é como um espelho; deve ser polida todos os dias.” Então Huineng escreveu um verso demonstrando que ele, e não Shenxiu, tinha um entendimento real, dizendo: “Que mente? Qual espelho?” Dessa forma, o ensinamento de Shenxiu da iluminação gradual, acompanhado pelo cultivo da mente, foi substituído pelo ensinamento de Huineng sobre a iluminação súbita, dispensando o treinamento da mente.

Kamalashila
O budismo foi levado para o Tibete nos séculos finais do primeiro milênio de nossa era. Em torno do ano 800, um grande debate ocorreu em Samye (bsam yas), no Tibete, para determinar qual forma de budismo seria adotada naquele país, o indiano ou o chinês. O momento decisivo na história do budismo tibetano ocorreu quando Kamalashila ganhou o debate em nome da vertente indiana, ensinando o caminho gradual, a senda do desenvolvimento da mente [*]. O ensinamento do lado chinês derrotado pregava a iluminação súbita, que poderia ocorrer sem a necessidade de esforço ou de disciplinar, ou purificar, a mente. Essa visão é geralmente descrita como um tipo de quietismo. O paralelo com a descrição dos atlantes que não realizavam esforço para obter a sua iluminação é óbvio. O rei do Tibete então decretou que somente o budismo indiano deveria ser adotado no Tibete, e o budismo chinês não seria permitido. 




Tsongkhapa
No período de Sakya Paṇḍita, 1182-1251, surgiram alegações de que os ensinamentos do quietismo chinês estavam reaparecendo no Tibete sob a roupagem do sistema Dzogchen e Mahāmudrā.[8] Uma preocupação que continuou até o tempo de Tsongkhapa, 1357- 1419, fundador da Gelugpa ou escola dos “Gorros Amarelos” em contraste com as ordens previamente existentes, os chamados “Gorros Vermelhos”. Tsongkhapa decididamente guiou o curso do budismo no Tibete a partir de então ao apresentar a sua poderosa promulgação da senda graduada e gradual, o Lamrim, e sua ênfase no desenvolvimento da mente.[9] A escola Sakya, previamente existente, da qual Sakya Paṇḍita foi um grande professor, também foi conhecida por sua ênfase no desenvolvimento da mente. As escolas Nyingma e Kagyu, anteriores às outras duas, não deixaram ensinamentos sobre o desenvolvimento da mente completamente de lado e todas as escolas compartilhavam o ensinamento principal do desenvolvimento da compaixão para o bem-estar de todos os seres. Entretanto, as ordens Nyingma e Kagyu são conhecidas por terem como seus ensinamentos principais, o Dzogchen e o Mahāmudrā, respectivamente. São ensinamentos como esses que foram considerados por Sakyapas e Gelugpas como formas de quietismo, como os ensinamentos Chan/Zen proibidos no Tibete após o debate de Samye.[**]

Sakya Pandita (centro)

Aqui aparentemente encontramos o motivo para a oposição mostrada nas Cartas dos Mahatmas aos chamados “Gorros Vermelhos”. Alguns de seus ensinamentos, como o Dzogchen nyingma e o Mahāmudrā kagyu, são quase idênticos às descrições dos tipos de ensinamentos na história do rei Thevetat/Devadatta da Atlântida, podendo ser considerados heranças dessa linhagem perversa da Atlântida. Trata-se da velha história do conflito entre bem e mal, mas aqui visto em termos de dois caminhos espirituais opostos, ensinados por duas hierarquias espirituais opostas. Uma questão tão importante que, de acordo com o relato, uma guerra foi travada na Atlântida. Apesar da necessidade de tolerância e respeito mútuo, os Mahatmas Teosóficos claramente se mostram como herdeiros dos virtuosos hierofantes da Atlântida e claramente se distinguiram do outro lado, ao mostrar sua oposição aos “Gorros Vermelhos”.

Notas:

1. Essa história é apresentada em A Doutrina Secreta, por H. P. Blavatsky (1888), vol. 2, pp. 427-428. 
2. “The Life of Thevetat, tranflated from the Balie,” in A New Hiftorical Relation of the Kingdom of Siam, de Monfieur de La Loubere (Londres, 1693, tradução em inglês a partir do francês), vol. 2, pp. 145-157.
3. “La Vie de Tevetat, Traduitte du Bali,” in Du royaume de Siam, par Monsieur de La Loubere (Paris, 1691), vol. 2, pp. 1 ff. (ed. Amsterdã, pp. 1-26.).
4. The Theosophist, vol. 5, no. 1, outubro de 1883, p. 9 ou 10; reeditado em H. P. Blavatsky Collected Writings, vol. 5, p. 222. Os nomes dos deuses do panteão etrusco usados aqui podem ser encontrados em Library of Universal Knowledge (baseado na Chambers’s Encyclopaedia), vol. 5 (New York, 1880), p. 571:  “. . . Os estruscos . . . . Em seu panteão, a predominância de deuses maléficos, dissimulados; . . . . eles dividem os seus deuses em duas classes, e os colocam mais ao norte, na região mais inamovível do mundo, de onde podem ignorá-los. A seção superior é formada por deuses escondidos, envoltos (Involuti), de números incertos, que agem de forma terrível e misteriosa, e doze deuses inferiores de ambos os sexos, chamados Consentes, Complices. Tinia (Zeus, Júpiter) é o chefe desses últimos e permanece entre essas duas divisões de deuses, recebendo ordens de destruição dos deuses superiores, enquanto que os inferiores formam o seu conceito ordinário e obedecem a seus comandos. Nove desses (Novensiles) lançam raios em vários períodos com efeitos peculiares. . . . Deuses, mais peculiarmente etruscos são Vejovis, um Júpiter mal, cujos trovões têm o poder de ensurdecer, e Nortia, a deusa do destino, também chamada Lasa Perversa. . . . Característico em seu grau mais alto é a sua “disciplina” ou arte de “divinação.” Isso foi revelado por Tages, um neto de Jupiter, . . .”
5. The Mahatma Letters to A. P. Sinnett, compilado por A. T. Barker (3rd rev. ed., 1962). Ver, por exemplo, a carta do Mahatma 49 (3rd ed., em língua inglesa, p. 280): “Sentimos que se aproxima o tempo em que teremos de escolher entre o triunfo da Verdade ou o Reino do Erro e—Terror. Temos de deixar que alguns poucos escolhidos tenham acesso ao grande segredo, ou—permitir que os infames Shammars conduzam as melhores mentes da Europa rumo a mais insana e fatal das superstições — o Espiritualismo; e nós sentimos de fato como se estivéssemos deixando uma grande carga de dinamite nas mãos deles, estamos ansiosos para vê-los se defenderem contra os Irmãos dos Gorros Vermelhos das Sombras. . . . Tendo então, de entregar com uma mão a arma tão necessária e perigosa para o mundo, e com a outra manter os Shammars longe (a bagunça causada por eles já é imensa), você acha que temos o direito de hesitar, de pausar e de sentir a necessidade da cautela, como nunca antes?
Shammar, em tibetano zhwa dmar, significa “gorro vermelho.”[Nota do tradutor brasileiro (NT): outra palavra usada para os “Gorros Vermelhos” em escritos teosóficos é “dugpa”, tibetano ’brug pa ou drukpa]. David Reigle no original deste artigo apresenta o exemplo do uso da palavra na carta do Mahatma #47 (3rd ed., em inglês, pp. 268-269): “...os Dugpas e os Gelugpas não são estão lutando apenas no Tibete; veja o seu trabalho vil na Inglaterra entre os “ocultistas e videntes”! Veja o seu colega Wallace pregando como um verdadeiro “Hierofante” da “mão esquerda” o “casamento da alma com o espírito” e invertendo o seu verdadeiro significado, na tentativa de provar que todo hierofante praticante deve ser pelo menos espiritualmente casado—se por algum motivo não puder fazê-lo fisicamente —havendo, de outro modo, um grande perigo de Adulteração do Bem e do Mal! Digo-lhes que os Shammars já estão lá e o seu trabalho pernicioso se coloca em nosso caminho em todos os lugares. Não pense nisso como algo metafórico, mas como um fato real, que poderá ser demonstrado algum dia.” 
6. The Mahatma Letters to A. P. Sinnett, carta 28: “Eles fazem parte da Irmandade Universal apenas no nome e gravitam em torno do Quietismo – a paralisia total da Alma”.
7. The Secret Doctrine, vol. 2, p. 202: “Ao invés de se tornar um neófito e gradualmente obter o seu conhecimento esotérico por meio de uma iniciação regular, um Adam, ou Homem, usa suas faculdades intuitivas e, induzido pela serpente (Mulher e matéria), tem um gosto da Árvore do Conhecimento – A Doutrina Secreta ou esotérica – de forma ilegítima.”
8. A fonte mais conhecida sobre isso é a obra de Sakya Paṇḍita, sDom gsum rab dbye. Este livro foi traduzido para o inglês por Jared Douglas Rhoton como A Clear Differentiation of the Three Codes: Essential Distinctions among the Individual Liberation, Great Vehicle, and Tantric Systems. The sDom gsum rab dbye and Six Letters (Albany: State University of New York Press, 2002). Ver principalmente os versos 167 e 174-175 (pp. 118-119, texto tibetano nas páginas 303-304): “Não há diferença significativa atualmente entre o Grande Selo (Mahāmudrā) e a Grande Perfeição (rDzogs-chen) e a tradição chinesa [Chan]... (167)
“Após a supressão da tradição chinesa, a tradição dos gradualistas passou a florescer. Ainda assim, a ordem real desapareceu e alguns, que se basearam somente na tradição do mestre chinês, secretamente mudaram o nome do seu sistema para Grande Selo (mahāmudrā). O Grande Selo atual é virtualmente [o mesmo que] o sistema religioso chinês.” ( 74-175) Um estudo completo desse assunto foi feito por David Jackson em seu livro, Enlightenment by a Single Means: Tibetan Controversies on the “Self-Sufficient White Remedy” (dkar po chig thub)(Wien: Verlag der Österreichischen Akademie der Wissenschaften, 1994). Os mesmos versos de Sakya Paṇḍita também foram traduzidos neste livro nas páginas 162-163, seguidas pelo texto tibetano.
9. Tsongkhapa fez isso mais notadamente com a sua grande e influente obra, Lam rim chen mo. Esse texto foi traduzido para o inglês em três volumes pelo Lamrim Chenmo Translation Committee como The Great Treatise on the Stages of the Path to Enlightenment (Ithaca, N.Y.: Snow Lion Publications, 2000, 2002, 2004). Os Gelugpas se tornaram, de longe, a ordem mais numerosa do budismo tibetano.

*Nota do tradutor (N.T.): “desenvolvimento da mente” aqui não significa o desenvolvimento de poderes psíquicos, ou siddhis, mas a purificação de corpo, fala e mente, uma senda gradual bem detalhada nos chamados textos Lamrim e em A Voz do Silêncio, Luz no Caminho, Ocultismo Prático e em outros textos de Blavatsky, Geoffrey Hodson e textos budistas indianos, como O Guia do Estilo de Vida do Bodhisatva de Shantideva. 

**N.T.: Tal perspectiva de separação de uma linhagem idônea e outra não idônea também encontra respaldo histórico na organização do cânone por Buston/Butön Rinchen Drup (1290-1364), abade do mosteiro Zhalu, que estabelece como autênticos apenas os tantras do período das novas traduções (período sarma) em diante (a que se vinculam os núcleos originais das escolas Kadampa, Sakya, Jonang, Zhalu e a posterior Gelugpa). A posterior escola gelugpa, ou ao menos, os seus núcleos mais originais e internos, seguiu a mesma sistematização feita por Buston. O próprio Tsongkhapa em seu Lamrim Chen Mo critica as perspectivas que defendem um caminho de iluminação súbita. Vertentes posteriores da Gelugpa, principalmente no século XX e XXI, passaram a adotar uma postura não-sectária que vê todos os ensinamentos e práticas de todas as escolas como válidos, abandonando os preceitos originais da gelugpa e a reforma trazida por Tsongkhapa. Ver: The Blue Annals, traduzido por Roerich, Motilal, 2007, p.102 e Butön’s History of Buddhism in India and its spread to Tibet, Boston: Snow Lion, 2013. 

[Traduzido do inglês para o português por Bruno Carlucci, em abril de 2018 com permissão do autor para publicação na seção em português do site Eastern Tradition Research Archive. A tradução é republicada na íntegra neste blog do Núcleo Jnana. O original em inglês pode ser acessado no site Prajna Quest].

Sobre o autor: David Reigle é teosofista, estudioso do budismo e especialista em sânscrito e em tibetano. Em seus sites e livros, Blavatsky's Secret Books: Twenty Years’ Research (1999), coescrito por Nancy Reigle, dedica-se à investigação das fontes indo-tibetanas de ensinamentos contidos em obras como A Doutrina Secreta, A Voz do Silêncio e nas Cartas dos Mahatmas. Uma coletânea de seus artigos foi publicada em português sob o título Os Livros Secretos de Blavatsky e A Tradição Sabedoria (2017) pela editora do Centro Lusitano de Unificação Cultural.  



sábado, 22 de fevereiro de 2020

Meditação sobre a impermanência


"Não importa onde viva, não posso evitar a morte. Não importa quem seja meu amigo, não posso evitar a morte. Todos os seres transitórios que viveram na face da terra morreram. Todos os que viverão no futuro também morrerão. Da mesma forma, entre aqueles que vivem no presente, não há um sequer que escapará da morte. Desde o tempo do meu nascimento até o dia de hoje quantos próximos a mim já morreram? Quantos que eram estranhos ou inimigos morreram? Não há razão em acreditar que permanecerei vivo para sempre enquanto todos eles morreram.
Ninguém está livre da morte. Ninguém é capaz de prolongar a vida indefinidamente. A partir do momento do nascimento, sem pausa, a vida começa a diminuir e a morte se aproxima. A cada mês ela chega mais perto. A cada ano, mais perto ainda. Rapidamente aproximo-me da morte. Agora, enquanto sou jovem, deveria estudar e praticar o Dharma, mas por vezes penso: “Ainda não estou velho, tudo bem se deixar para depois.” Nesta vida curta, não posso ser tão ocioso! Por exemplo, se eu não praticar o Dharma enquanto jovem, então aos sessenta anos grande parte da vida já terá passado. Mesmo se depois de uma idade avançada, decidir praticar o Dharma, como o corpo e a mente poderão estar mais debilitados, será mais difícil alcançar grande avanço. Ademais, metade do tempo restante da vida é gasto dormindo.
Nesse sentido, também gastarei o tempo da preciosa vida humana com atividades como ter de preparar comida, andar para lá e para cá, distrações etc. Mesmo sob a perspectiva de alguém com grande motivação e perseverança, todo o tempo restante disponível para praticar o Dharma e avançar no caminho não é muito abundante. Devo rapidamente compreender tal verdade, conforme é vivenciada pelos santos seres, esforçando-me a cada momento disponível. Nesta vida passageira, possa eu jamais adiar a prática do Dharma por causa da preguiça e da procrastinação! É muito importante meditar dessa forma repetidamente, pensando nas razões da prática." - Essência da Ambrosia - Lama Taranatha

Lama Taranatha 

domingo, 5 de janeiro de 2020

Lama Tsongkhapa sobre o sofrimento

Je Tsongkhapa* - Lamrim ChenMo (Vol. I, cap. XVII):

"Ao entender que o karma contaminado produz o sofrimento do samsara, que as aflições (kleshas) produzem karma e que a concepção de um eu inerente é a raíz da perturbação das aflições (klesha-avarana),

Ao entender que é possível eliminar a noção de que há um eu inerentemente existente, você entenderá a verdade da cessação do sofrimento.

As oito marcas do sofrimento incluem: (1) o sofrimento do nascimento; (2) o sofrimento do envelhecimento; (3) o sofrimento da doença; (4) o sofrimento da morte; (5) o sofrimento de encontrar o que é desagradável ; (6) o sofrimento da separação do que é agradável; (7) o sofrimento de não conseguir o que quer; (8) o sofrimento dos agregados (skandhas - forma, sensação, percepção, tendências mentais, consciência dual)."

Esses 5 agregados (skandhas) que nos dão um senso de "eu": forma (rupa), sensação (vedana), percepção (samjna), formações/ tendências mentais (samskaras), consciência (vijnana) estão interligados e contaminados com as aflições, como a ignorância (avidya) de imputar uma existência inerente a esse eu e aos fenômenos ao redor, o apego ao "meu" e ao que me faz bem e a aversão ao que ameaça esse "eu" e o que chamo de "meu" ou ao que traz sensações desagradáveis ao "eu".

*Je Tsongkhapa (1357-1419) foi o fundador da escola Gelugpa e é considerado o grande reformador do budismo no Tibete. 


Je Tsongkhapa (centro), e seus dois principais discípulos abaixo, Gyaltsab (esquerda) e Khedrub (direita). 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Apolônio de Tiana - Parte I

Apolônio de Tiana

H.P.Blavatsky

Em A History of The Christian Religion To The Year Two Hundred, de Charles B. Waite, A.M., anunciado e analisado no periódico The Banner of Light (Boston), encontramos trechos da obra que trata de Apolônio de Tiana, o grande taumaturgo do segundo século A.D.*, jamais rivalizado por outro no Império Romano.

"Apolônio de Tiana foi o personagem mais impressionante daquele período... antes de seu nascimento, Proteus, um deus egípcio, apareceu ante a mãe de Apolônio e anunciou que ele encarnaria como o seu filho." 

Essa é uma lenda que, em tempos passados, fazia de todo personagem extraordinário um "filho de Deus", milagrosamente nascido de uma virgem. E assim segue a história.  
Apolônio de Tiana 
"Em sua juventude, Apolônio era famoso por sua beleza, seus poderes mentais e a sua vida ascética. Quando próximo dos cem anos de idade, foi levado ao Imperador de Roma, acusado de ser um "encantador", foi aprisionado de onde desapareceria, sendo encontrado no mesmo dia por seus amigos em Puteoli, a uma distância de três dias de Roma." (pp.90-92).

Alguns escritores tentaram tornar Apolônio um personagem lendário, enquanto cristãos zelosos insistiriam em chamá-lo de impostor. Se a existência de Jesus de Nazará fosse tão bem atestada pela história e ele tivesse sido tão bem conhecido por escritores clássicos como Apolônio, nenhum dos céticos atuais poderia duvidar da existência do filho de Maria e José.

Apolônio de Tiana foi amigo e correspondente de uma Imperatriz romana e de vários imperadores, enquanto que sobre Jesus pouco restou nas páginas da história, como se a sua vida tivesse sido escrita nas areias do deserto. A sua carta para Abgarus, o príncipe de Edessa, cuja autenticidade é outorgada apenas por Eusébio - o Barão de Munchausen da hierarquia patrística - é chamada em A View of the Evidences of Christianity, "uma tentativa de fraude" até mesmo pelo teólogo Paley, cuja fé aceita as história mais incrédulas. Apolônio, portanto, é um personagem histórico, enquanto que muitos dos dos "pais apostólicos", quando investigados sob o olhar da crítica histórica, começam a dissipar-se e a desaparecer como o fogo fátuo.

Publicado originalmente em The Theosophist, Vol. II, No. 9, June, 1881, pp. 188-189.
*N.T. (nota do tradutor): GRS Mead em suas pesquisas evidencia que Apolônio teria vivido no século I AD.   
GRS Mead, Secretário de Blavatsky, esceveu a obra Apolônio de Tiana: Sábio, Profeta e Renovador dos Mistérios (ed. Teosófica), baseando-se em diferentes relatos, como o de Filóstrato, resgatando a importância desse personagem para estudiosos de teosofia, do cristianismo primitivo e das tradições de mistérios. Mead dedicou a vida ao estudo do hermetismo, do gnosticismo cristão antigo e de personagens importantes que de alguma forma contribuíram ou interagiram com os grupos e escolas dos primeiros cristãos. 
Assim como Blavatsky, em Ísis em Véu vol. III e nos artigos presentes no vol. 5 de A Doutrina Secreta, a obra de Mead foi precursora das descobertas de evangelhos apócrifos e de evidências de uma outra história do cristianismo no século XX, mostrando um outro Jesus, não um mártir da ortodoxia, mas um Mestre elevado. Logo posterior ao período de Jesus (que de acordo com as pesquisas de Mead teria sido no final do séc. I a.c.), Apolônio, também um Mestre elevado, um pitagórico, surge interagindo com diferentes escolas e personagens de sua época. 

Para mais informações sobre Mead e sua obra, clique aqui.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Blavatsky e o ano novo

 1888

Helena Petrovna Blavatsky 
As pessoas geralmente desejam a seus amigos um feliz e, às vezes também acrescentam “próspero”, ano novo a seus amigos. Sob o número sombrio de 1888, não há muitas chances de felicidade ou prosperidade para aqueles que vivem em prol da Verdade; mas, ainda assim, o ano é anunciado pela gloriosa Vênus-Lúcifer, brilhando de forma tão resplandecente que tem sido confundida com outra visitante ainda mais rara, a estrela de Belém. Certamente que, com ela também presente, algo do princípio Christos deve nascer sobre a terra em tais circunstâncias. Mesmo que a felicidade e a prosperidade estejam ausentes, é possível encontrarmos algo maior que ambas neste próximo ano. Vênus-Lúcifer é a patrona de nossa revista e como escolhemos vir à luz sob seus auspícios, também desejamos tocar a sua nobreza. Isso é possível para todos nós individualmente, e, em vez de desejarmos um próspero ou feliz ano novo a nossos leitores, sentimo-nos mais propensos a pedir-lhes que tornem o ano digno de seu arauto brilhante. Podem assim fazê-lo aqueles que são corajosos e resolutos. Thoreau destaca a existência dos artistas da vida, pessoas que podem mudar a cor do dia e torná-lo belo para aqueles com quem têm contato. Nós afirmamos que há Adeptos, Mestres da vida, que a tornam divina, como a todas as outras artes. Não seria esta a maior de todas as artes, aquela que afeta a própria atmosfera na qual vivemos? Que se trata da arte mais importante percebemos de imediato ao nos lembrarmos de que cada pessoa  a respirar o sopro da vida tem um efeito sobre a atmosfera mental e moral do mundo e contribui para colorir o dia daqueles ao seu redor. Aqueles que não ajudam a elevar os pensamentos e as vidas dos outros, necessariamente, paralisam-nos por sua indiferença se não estiverem a ativamente arrastarem-nos para baixo. Quando este último ponto é alcançado, a arte da vida se converte na ciência da morte; vemos o mago negro em ação. E ninguém pode ser completamente inativo.
Embora muitos livros e retratos ruins sejam produzidos, nem todos que são incapazes de escrever ou pintar bem insistem em fazê-lo de forma ruim. Imaginem o resultado se assim o desejassem! Entretanto, o mesmo se aplica à vida. Todos vivem, pensam e falam. Se todos os nossos leitores que têm alguma simpatia para com Lúcifer se esforçassem em aprender a arte de tornar a vida não só bonita, mas também divina e se comprometessem a não mais serem levados pela descrença na possibilidade desse milagre, mas iniciassem a tarefa hercúlea de uma vez por todas, então 1888, por mais pouco auspicioso que seja o ano, seria devidamente conduzido pela estrela radiante.
A felicidade e a prosperidade nem sempre são as melhores companhias para mortais pouco desenvolvidos como a maior parte de nós; elas raramente trazem consigo a paz, que é o único contentamento permanente. A noção de paz é geralmente conectada com o fim da vida e um estado de consciência religiosa. Esse tipo de paz, porém, geralmente traz consigo o elemento da expectativa. Os prazeres deste mundo foram subjugados e a alma aguarda alegremente com a expectativa dos prazeres da próxima vida. A paz da mente filosófica é muito diferente e pode ser alcançada cedo na vida, quando os seus prazeres mal foram experimentados, bem como quando já foram completamente bebidos. Os transcendentalistas americanos descobriram que a vida poderia se tornar sublime sem auxílio sequer de circunstâncias ou fontes de prazer e prosperidade. É claro que isso já foi descoberto muitas vezes antes, e Emerson apenas assumiu novamente a súplica de Epiteto. Mas toda pessoa deve descobrir esse fato novamente por si mesma, e uma vez tendo compreendido isto, ela sabe que será miserável caso não se esforce em tornar tal possibilidade em realidade na sua própria vida.
O estoico se tornou sublime porque reconheceu a sua própria responsabilidade absoluta e não tentou fugir dela; o transcendentalista ainda mais, pois tinha fé nas possibilidades desconhecidas e não testadas dentro de si. O ocultista reconhece plenamente a responsabilidade e reivindica o seu título após ter testado e adquirido o conhecimento de suas próprias possibilidades. O teosofista que tem seriedade vê sua responsabilidade e esforços para encontrar o conhecimento, vivendo, nesse ínterim, de acordo com os padrões mais elevados de que tem consciência. A todos eles, Lúcifer os saúda! A vida do Homem está em suas próprias mãos, o seu destino pertence a si mesmo. Então, por que 1888 não deveria ser um ano de desenvolvimento espiritual maior do que todos em que vivemos anteriormente? Depende de nós mesmos para assim fazê-lo. Esse é um fato real, não um sentimento religioso.
Num jardim de girassóis, cada flor se volta para a luz. Por que não fazemos o mesmo? Que ninguém imagine se tratar de mero capricho dar importância ao nascimento do ano. A terra passa por suas fases definidas e o ser humano com ela; e se um dia pode ser colorido, um ano também pode. A vida astral da terra é jovem e forte entre o Natal e a Páscoa. Aqueles que formularem seus desejos agora terão força extra para realizá-los com diligência.
[Artigo originalmente publicado na revista Lucifer, Vol. I, No. 5, Janeiro de 1888, pp.
337-338. Traduzido por Bruno Carlucci em dezembro de 2017. Revisado em dezembro de 2019].